quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Um ideal de parlamento

O Pedro é, como eu, um crítico do sistema, desiludido pelo tráfico de influências, a promoção do demérito e a pobreza de objectivos não-eleitoralistas nesta democracia convertida em partidocracia, onde a representação popular se submete aos arbítrios partidários e o poder passou de um meio de execução do bem comum para um fim em si mesmo ou um instrumento de prossecução de carreiras individuais. Com isto em mente, o Pedro e eu decidimos entregar-nos ao debate sobre o modelo de regime e de sociedade, sem tabus e com toda a intenção de pensar "fora da caixa". No InBetween há já várias entradas nesse sentido; esta é a primeira neste estaminé e é apenas e só a reflexão sobre um ideal: se é ou não prático, isso será a discussão posterior.


Quarta-feira, o Diário de Notícias revelou que o Partido Socialista encomendou um estudo de reforma do sistema eleitoral que poderá, no futuro, vir a converter-se em projecto-lei. O documento, entretanto publicado pela Sextante Editora, propõe a alteração dos círculos eleitorais e a introdução de um segundo boletim de voto, distinguindo assim a eleição dos representantes populares da da lista partidária, a primeira por círculos que podem ser maiores ou mais pequenos que os actuais e a segunda por um único nacional. O estudo propõe também a redução do número de deputados de 230 para 229 de modo a evitar empates, mas deixa cair a proposta de círculos uninominais. Embora não conhecendo o conteúdo completo do documento apresentado esta semana, o que foi revelado pelo Diário de Notícias é manifestamente insuficiente para melhorar a representatividade e qualidade do parlamento, já que se limita a permitir o reconhecimento dos nomes dos candidatos a representantes dos círculos eleitorais, distinguindo-os da eleição da lista partidária em bloco, sem que com isso anule o controlo que os aparelhos partidários têm sobre os mandatos dos deputados pelo mecanismo da disciplina de voto e pela exclusividade de apresentação de candidatos. Mais: ao prever a possibilidade de junção do Alentejo ou das Beiras num só círculo, aumenta o número de representados por representantes. Num país de 10 milhões de habitantes e pouco mais de 92 mil quilómetros quadrados, tenho alguma dificuldade em perceber a vantagem de ter um círculo eleitoral com a dimensão de quase um terço do território nacional.

Tenho por opinião que quanto mais um deputado for um "vizinho", maior será a sua capacidade de conhecer e compreender as pessoas e a área que ele representa. Isto é, quanto menor for a dimensão do círculo eleitoral, maior será o potencial de representatividade por redução do anonimato. E, embora reconhecendo que há valor na diversidade de eleitos de um mesmo território, o aumento da quantidade de círculos aconselha à redução do número de deputados atribuidos a cada, o que me leva a preferir a uninominalidade.

Também sou da opinião de que o exclusivo partidário nas candidaturas a deputado contribui para o corroer da representatividade conferida aos parlamentares por sufrágio popular, conforme demonstra a imposição recorrente da disciplina de voto. Se a lógica de uma democracia representativa é que uns sejam escolhidos para agir por muitos, não deve, em princípio, ser legítimo que a relação entre eleitos e eleitores seja intermediada por partidos que depois a subjugam aos objectivos insondáveis dos seus aparelhos. Se assim não fosse e os deputados não passassem de caixas de ressonância partidárias, mais valia que as comissões politicas nacionais decidissem quem representa que círculo a cada 4 anos, sem nunca consultar os eleitores, ou, em alternativa, que o parlamento fosse constituido por um deputado de cada partido com um mínimo de votos a nível nacional. Poupava-se dinheiro e evitava-se o triste espectáculo de uma representatividade que é, afinal, apenas nominal, porque a submissão por via da disciplina de voto subverte qualquer relação viva que possa existir entre eleitos e eleitores. E há ainda a questão da escolha que a comunidade pode fazer dos seus representantes, limitada por decisões internas dos partidos que constituem listas blindadas de mérito duvidoso, por o critério que preside à escolha dos seus elementos ser demasiadas vezes a fidelidade acritica ao aparelho partidário e não as capacidades individuais de compreensão e representação das populações.

Dito isto, eis então o meu ideal de parlamento: que seja constituido por deputados eleitos uninominalmente pelos municípios, o que actualmente resultaria numa Assembleia da República com 308 lugares e implicaria que nos boletins de voto constassem nomes de pessoas e não de partidos; que esteja aberto a candidaturas independentes, livres de qualquer vínculo partidário; que, para mais, os meios de campanha sejam disponibilizados pelo Estado ou pela legislação em vigor, de modo a evitar que o mérito individual seja suplantado por limitações financeiras; que todos os candidatos concorram individualmente, fazendo ou não parte de partidos políticos, e que sejam os seus nomes e não a sua militância o que consta no boletim de voto.

A eleição por círculos municipais pode originar um fenómeno de caciquismo? Pode. Podemos acabar com maus deputados porque deixaria de haver um filtro de qualidade na forma das distritais partidárias? Talvez. Mas basta olhar para situação actual para se perceber que esse mesmo mecanismo não é garante de melhores deputados, precisamente porque, do mesmo modo que pode pôr de parte maus candidatos, também anula os bons a partir do momento em que estes não se submetem à lógica de rebanho do partido. E a prática parlamentar recente mostra bem ao ponto a que se chegou na promoção do demérito. As candidaturas devem ser livres, dependentes apenas da vontade individual de cidadãos e não de aparelhos, para que a escolha que a comunidade faz dos seus representantes possa ser igualmente livre, sem ser filtrada por alguns. E, porque assim é, qualquer cacique que apareça poderá ser livremente desafiado por qualquer cidadão, sem necessidade de aval partidário.

5 comentários:

Pedro Fontela disse...

ehehe já estava há uns tempos à espera deste primeiro post :)

O que falas aqui faz-me lembrar (pelos menos em parte) a situação do parlamento português pré-regeneração (1851-1853) em que não havia sequer partidos instituidos mas "coligações" algo vagas e pouco sólidas. O resultado, como também mencionas, foi o aumento de poder do cacique e o poder do governo poder manipular as eleições de forma a obter uma câmera cooperante. Além disso existe a questão do que eu considero ser a impossibilidade de governar num parlamentarismo puro - não há estabilidade suficiente que permita ao governo aprovar medidas de forma coerente. As medidas de criação de circulos que se querem implantar (e pelo pouco que tenho visto) parecem ser pensadas de forma a criar um rotativismo entre PS e PSD já que tendem a facilmente excluir outros partidos.

A questão da proximidade do eleitor ao eleito até pode ser benéfico em algumas instituições mas o poder central deve ser talvez um pouco menos ligado às pressões locais e mais com um "olho" na "big picture" - ou seja talvez faça sentido pensar numa forma de substituir o poder local por algo que responda mais ao que os cidadãos esperam mas atar o que é central a isso pode ser meio caminho andado para um regresso ao sec. XIX. Agora assim de repente estou-me a lembrar dos "parlamentos" locais que existiam em várias regiões de França no antigo regime e que eram realmente dominados pelos interesses locais mas sem nunca terem poder de interferir com Paris - e quando tiveram oportunidade e fizeram birra resultou numa borrada colossal para eles.

Héliocoptero disse...

Pedro,

Eu ainda não falei do poder executivo, que é, de facto, a grande questão quando se parte de um parlamento livre. Mas parece-me de importância vital que uma democracia representativa tenha uma instituição política nacional que seja isso mesmo: representativa! A partir do momento em que ela se separa de quem a elege, da comunidade nacional que é somatório de comunidades locais, está aberto o caminho para o actual processo de descredibilização e de falta de participação dos cidadãos na gestão do seu país. Se as pessoas não sentem que são ouvidas e que têm, de facto, um papel a desempenhar, que a sua voz é filtrada e usada consoante os interesses de terceiros, o mais natural é que elas se afastem e boicotem o sistema.

Quanto ao executivo, não é obrigatório que ele derive de uma maioria parlamentar. Para além do actual sistema parlamentar, podemos sempre considerar um formato presidencialista ou uma forma de misto dos dois. Não ponho até de parte a restauração de uma monarquia para ajudar a olear a engrenagem política de um parlamento livre e efectivamente representativo.

Héliocoptero disse...

Esqueci-me de referir uma coisa:

O caciquismo continua a existir, mas na forma partidária. Continuamos a ter individuos eleitos ou nomeados para a gestão da coisa pública e que são seguidos por bandos de bajuladores, sempre prontos a cumprir os pedidos e caprichos do líder e a votar nele ou no que ele diz sem qualquer pestanejar crítico. Simplesmente a coisa tem hoje o caracter refinado do partido político, onde dos militantes se espera unidade e fidelidade ao ponto da anulação da consciência individual.

Para o cidadão comum, isto vem com uma agravante: se se quiser enfrentar um cacique, está-se limitado ou mesmo impossibilitado de o fazer, porque ou se tem que competir com os elevados recursos de partidos-empresa ou não é possível concorrer a um cargo político sem um aval partidário.

Pedro Fontela disse...

Essa "oleagem" entre o legislativo e o executivo realmente parece-me problemática - pelo nosso passado histórico nessas matérias, muito dogmatismo e pouco pragmatismo. O que falas em geral parece-me digno e sensato mas deixa-me colocar uma questão que me preocupa: as pessoas sabem sempre o que é melhor em todas as circunstâncias? Em muitos casos não serão tentadas a ceder a pressões por ser mais comodo quando uma autoridade central preocupada com questões de justiça estaria presa à defesa do que é correcto? Parece-me que há casos em que isso pode muito bem acontecer - aliás até a maior Republica clássica, Roma, o reconheceu ao permitir um ditador em tempos de crise com autoridade para fazer o que fosse necessário.

A política de massas não se baseia ela toda na destruição do individual? Os programas são amalgamas de favores a prestar, promessas que poderão ou não ser cumpridas (sem ligação a uma visão) e essencialmente bajulação - é para isso que os "pollers" cá estão para dizer às campanhas o que o "povo" quer ouvir. Talvez a política local pudesse desempenhar um papel em personalizar a política mas teria que ser em moldes que iriam quebrar a actual base de partidos - só de pensar na rede de contactos e favores locais que existem em todas as cidades penso que só de uma posição de força absoluta se poderia forçar qualquer mudança nesse sentido sem fazer cair um governo reformador.

Héliocoptero disse...

Não, as pessoas não sabem sempre o que é melhor em todas as circunstâncias e nunca vão atingir esse grau de perfeição. Diz o adágio que errar é humano e é bem verdade. E, dado que todos os orgãos públicos serão ocupados por pessoas, eis o motivo pelo qual o poder deve ser exercido num quadro de separação e equilíbrio.

Sim, poderão existir pressões e jogos de interesses. Aliás, não é uma hipótese: é uma certeza! Mais um motivo para manter uma separação saudável dos poderes e para o jogo democrático não estar viciado por aparelhos partidários que não só escapam ao escrutínio dos cidadãos, como desvalorizam a rotatividade que existe para prevenir o vício do poder: mudam-se as caras de cartaz, mas permanecem os aparelhos.

A concialiação dos interesses locais com os nacionais pode passar pela soma dos primeiros em interesses regionais, isto é, círculos eleitorais regionais em vez de locais. Mas isso é o que temos actualmente e não deixamos de ter interesses em conflito com o desiquilibrio territorial que se conhece.

P.S.: Os poderes extraordinários dos ditadores romanos têm um equivalente moderno nos poderes de emergência de monarcas europeus actuais, utilizados pela última vez na Segunda Guerra Mundial.