domingo, 9 de novembro de 2008

Separar para garantir

Quando Montesquieu propôs a separação dos poderes executivo, legislativo e judicial, fê-lo com o objectivo de formular um regime provido de mecanismos de combate ao despotismo, isto é, onde a vontade arbitrária de uma pessoa ou de um punhado delas pudesse ser lei. Parafraseando as suas palavras, um Estado é livre quando o poder está habilitado a parar o poder.


Eis a justificação, então, para o sistema de pesos e contra-pesos, os checks and balances da república americana, cujos fundadores inspiraram-se precisamente na obra de Montesquieu: de um lado um presidente que exerce o poder executivo, do outro uma assembleia nacional que detém o legislativo e ambos com capacidade de anularem as decisões um do outro. No meio fica um poder judicial cuja cúpula requer a aprovação de quem executa e de quem legisla. A praxis política americana encarregou-se de reforçar a dificuldade de um poder despótico pela liberdade de voto dos legisladores que, não obstante a militância partidária, são, em princípio, livres de tomar a sua decisão individual até em questões orçamentais. A primeira votação do Plano Paulson há uns meses atrás foi testemunho disso mesmo: um presidente republicano propôs uma medida financeira que foi chumbada por congressistas do seu próprio partido, em larga medida pressionados pelos eleitores que eles representam e que fizeram chover cartas, telefonemas e emails em que ameaçavam com a arma do voto. A Democracia em acção! E o contraste com o parlamentarismo português salta à vista.

Em Portugal, os deputados são eleitos em blocos de listas partidárias sem que as populações dos respectivos círculos eleitorais saibam, por nome e currículo, quem são os seus representantes parlamentares. Pior que isso, numa democracia que é suposto ser representativa, mandatos populares que deviam ser exercidos livremente pelos legisladores escolhidos pelas comunidades são tidos como propriedade do partido, já que os deputados foram eleitos por listas partidárias e, contrariamente ao que sucede no parlamento americano, a pressão dos eleitores sobre os eleitos chega a ser tida como ilegítima, como se viu neste caso bem recente. Em vez de, conforme dita o artigo 10º da Constituição, concorrerem para a "organização e para a expressão da vontade popular", os partidos políticos tendem a anulá-la ou até a considerar a sua livre expressão como ilegitimidade e sem a possibilidade de as comunidades poderem punir quem ignora a sua função representativa, porque a eleição é em bloco e o exercício individual do poder perde-se no anomimato colectivo do partido.

Acresce ainda a separação entre poder legislativo e executivo, que em Portugal é frequentemente nominal, porque o último sai de uma maioria do primeiro e, pela disciplina de voto e o sentido de propriedade dos mandatos populares, o chefe de governo - que é líder partidário - é também de facto um chefe parlamentar. Noutras democracias europeias, este modelo é atenuado pela autonomia real dos legisladores que, por vezes, revoltam-se contra projectos governamentais; em Portugal, há deputadas que perdem o sono por terem que exercer livremente o seu mandato popular segundo a sua consciência. Que não haja espanto, portanto, no facto de, em tempos de maiorias absolutas, o papel da Assembleia da República ser muitas vezes protocolar por indistinção entre os poderes legislativo e executivo.

A praxis política nacional é uma de autoritarismo rotativo, porque consagrou-se a estabilidade governativa como sinónimo de ausência de oposição efectiva. Usando os termos de Montesquieu, nós, portugueses, não concebemos um governo estável sem a ausência de um poder habilitado para parar o poder, embora nos lamentemos abundantemente da arrogância e até autismo que em tantos assuntos podem caracterizar as maiorias absolutas.

5 comentários:

Pedro Fontela disse...

Nnão existe realmente separação entre o executivo e o legislativo (e nem em relação com o judicial já que os políticos também opinam e as duas classes têm um acordo tácito de corporativismo descarado) - se um deriva do outro era complicado que existisse (daí a "necessidade" de um poder moderador do presidente que seria dispensavel se as coisas funcionassem normalmente). Mas tendo dito isto não sou fã da importação de modelos lá de fora sem devida consideração sobre as especificidades nacionais, e o facto de não haver tradição disso por cá não pode ser apagado por decreto - daí que muitas medidas até possam dar uma cara ao candidato regional mas não mudam a sua dependência do partido.

Héliocoptero disse...

É verdade que os sistemas não se devem importar por decreto. Temos amplos exemplos disso mesmo em Portugal, a começar pelo desejo de importação do ensino livre de chumbos da Finlândia.

Mas, no caso da configuração do sistema político, temos no ar uma boa oportunidade para desenvolver um novo conceito de estabilidade governativa: a presidencialização das autarquias. Até porque os municipios estão abertos a candidaturas independentes e até porque isso seria um trabalho de bases na prática do diálogo e compromisso que tanto falta na política à portuguesa, mais virada para um modelo de rotatividade do «eu quero, posso e manda».

Pedro Fontela disse...

Eu devo estar um pouco cansado mas quando oiço a do poder municipal só consigo pensar: Fátima e Isaltino x300. Eles também foram eleitos democraticamente por amplas maiorias. Sem um enquadramento mais eficaz em termos de controlo e supervisão dos orgãos eleitos penso que tudo isso seriam gestos vazios - ou isso ou a limitação extrema dos cadernos eleitorais.

Héliocoptero disse...

É verdade, Pedro, e é também verdade que é necessário um enquadramento legal mais eficaz.

Mas deixo uma pergunta: a assembleia municipal é um poder habilitado a parar o poder do executivo camarário ou vai pelo mesmo caminho que o parlamento e governo nacionais?

Se não conseguirmos ter uma democracia salutar, equilibrada e com os cidadãos mobilizados a um nível local - à nossa porta, portanto - como é que vamos conseguir tê-lo a nível nacional?

Pedro Fontela disse...

Neste momento tenho que responder que não é um poder habilitado pelos vicios que o afectam. Mais tarde logo se veria qual a estrutura local necessária mas neste momento o central seria sanear as actuais forças políticas.

Quanto à perspectiva de longo prazo: eu estou mais inclinado a considerar uma mistura de instituições democráticas com outras não eleitas universalmente. Penso que há utilidade para os dois modelos desde que usados nos lugares certos.