terça-feira, 20 de outubro de 2009

Coisas de não-praticantes

Pior que um escritor que fala sobre um assunto com uma pobreza congrangedora de argumentos e do fundo dos seus rancores, só mesmo um deputado que defende a perda de cidadania por delito de opinião.

Mário David, representante nacional no Parlamento Europeu eleito pelo PSD, exortou José Saramago a prescindir do estatuto de cidadão português devido às declarações do Nobel da Literatura sobre a Bíblia. Porquê? Porque, segundo o eurodeputado, "se a outorga do Prémio Nobel o deslumbrou, não lhe confere a autoridade para vilipendiar povos e confissões religiosas, valores que certamente desconhece mas que definem as pessoas de bom carácter."

Bom caractér define-se por acções, não pela mera militância em grupos, sejam eles políticos ou religiosos. O que quer dizer que, do mesmo modo que as palavras de Saramago revelam ignorância e inconsciência das coisas, as de Mário David reflectem a intolerância de quem acha que a manifestação de diferença de crenças - mesmo que intelectualmente pobre - é motivo para a perda de cidadania. Um ateu não é uma pessoa de bom caractér só por ser ateu; um homem religioso também não só por ter fé numa ou mais divindades. José Saramago não ficou bem na fotografia e Mário David também não; mais valia que o primeiro se tivesse limitado a falar do seu livro e o segundo tivesse ficado calado. Estranhamente, os dois extremos parecem tocar-se: à ignorância de quem fala de coisas que obviamente não conhece - ou finge não conhecer - responde a ignorância de quem diz não ter lido nem ter intenções de ler o livro de Saramago.

Para pôr isto noutros termos, não basta afirmar que se é crente: há que praticar! Alguém que diga isto ao "nem sequer sou católico praticante" eurodeputado Mário David. Ou ele pratica ou não pratica: se não pratica, não é católico. Um pouco como o bom caractér, não basta dizer que se milita num grupo: há que verter as palavras em acções. E os dois senhores deram provas de demérito e de caractér que deixam algo a desejar.

5 comentários:

Miz Lucas disse...

Estou farta desta teima de certos religiosos de que os valores morais e eticos sao de alguma forma monopolio da religiao (especialmente das tres grandes: a crista, o islao e o judaismo). Estes sao, na verdade, valores humanos, vindos da sua evolucao como animais sociais, e a sua origem e razao de ser e bem explicada por biologos e antropologos. Nada de supernatural nisso!

Anónimo disse...

Apesar de Saramago estar na "época de fazer publicidade" ao seu livro, não vejo porque não deva ele falar da Bíblia.

Porque uma coisa é certa: conhecendo-a bem ou não, o que interessa na prática é aquilo que é feito ou dito supostamente baseado nela. E há que manter presente do espírito que as palavras que estão explícitas ou implícitas na Bíblia já mataram e ainda matam (ainda que em menor, muito menor número) e são responsáveis pelos mais variados tipos de violência e preconceito - desde pessoas de outras crenças até pessoas homossexuais ou que pratiquem e não escondem algo condenável pela moral que está na Bíblia.

Para além do mais, um representante da Igreja em Portugal (creio eu) afirmou não há pouco tempo que o "ateísmo é o flagelo da sociedade moderna" e não houve polémica; foi tudo permitido e até aplaudido de pé, como se fosse alguma dedução lógica e a solução de algum problema. Se difamações desse género são concedidas a organizações, acho bem que uma pessoa com posição de relevo e que partilha de uma opinião contrário à organização mostre também a sua opinião - porque não foi mais do que isso - quanto ao que a Ireja e mais igrejinhas pregam. Que apesar de terem caridade pelo meio, têm também o ódio, a violência e o incitamento à padronização da sociedade, entre outras coisas.

Nunca li Saramago, e duvido que vá começar a ler agora (talvez um dia), mas não acho que a opinião dele seja chocante. Ou melhor, é. A única diferença é que contra ele se une toda a gente, contra o poder a Igreja poucos falam.

Héliocoptero disse...

Elijah,

O problema não é Saramago falar da Bíblia. Qualquer pessoa pode emitir opiniões sobre esse ou outro livro, mas convém que o faça de forma informada. O problema de Saramago é o falar da coisa com uma leviandade e pobreza de argumentos assustadora; mais parece estar a vomitar rancor do que ideias sustentadas e, nesse sentido, o que ele disse não é melhor do que disse o Cardeal Patrairca quando se referiu ao ateísmo como o flagelo da sociedade moderna.

Não é por as palavras de D. Policarpo terem passado quase sem crítica que as de Saramago passam a ser justificáveis. Ignorância é ignorância, venha ela de onde vier ou tenha ou não resposta.

E, acrescente-se, os crimes descritos na Biblia e os perpetuados em nome dela não são um exclusivo do mundo religioso: foi também a prática no Ruanda, nos gulags soviéticos ou nas perseguições na revolução cultural chinesa. Qualquer ideologia é permeavel a extremismo e violência, seja ela religiosa, política ou etnica. Saramago que pense nisso antes de vir apontar dedos como se não houvesse igual culpa noutros sítios ou como se ele nunca tivesse manifestado apoio a ditaduras como a de Cuba.

Anónimo disse...

Eu creio que a partir do momento em que um livro considerado sagrado diz, numa das suas passagens, que para um homem provar a sua fidelidade a deus deveria matar o seu próprio filho (apesar de mais tarde não ter que o fazer), se torna imediatamente um livro de "maus costumes", parafraseando Saramago.

Não que Saramago tenha razão em tudo, longe disso. Mas se todas as ideologias são permeáveis a violência, é necessário que pessoas de outras ideologias apontem essa mesma violência, violência essa que é actualmente escondida, pois é raro a Igreja aparecer nos media a não ser para falar de caridade e de peregrinações. Nunca para falar da sua violência contra o ateísmo, a homossexualidade, outras religiões, and so on...

Héliocoptero disse...

A Biblia tem histórias piores que a de Isaac, mas também tem outras melhores. Não é um livro todo ele mau nem todo ele bom.

E desculpa, mas a auto-crítica é tão ou mais importante que a crítica vinda "de fora". Porque se não fazes a primeira corres o risco de ser incoerente ou mesmo hipócrita quando fazes a segunda; porque se não és capaz de te criticares, dificulmente vais ser capaz de aprender e mudar com as críticas dos outros. Depois andamos a apontar os dedos aos defeitos uns dos outros sem que nada mude, numa discussão que tem muito de clubismo e quase nada de honestidade intelectual.

Já o disse noutra altura e volto a dizer. Saramago tem o seu mérito como escritor, mas, em qualquer outro assunto, o normal é não mandar uma p'ra caixa.