quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Ai esse fel...

Sobre esta entrevista a José Saramago - que continua a dar muito que falar - é-me impossível lê-la e não achar que é de uma pobreza aflitiva.

O raciocínio é desconexo e os argumentos são primários, mais parecendo uma colagem de clichés sobre a Bíblia. Que foi escrita durante mil anos, que a mente por detrás da coisa foi um deus cruel, invejoso e insuportável, que as Cruzadas foram um crime do Cristianismo e um exemplo de violência em nome de uma religião, puxa de Kung para dizer que as religiões afastam os homens e gosta de sugerir uma reforma penal do Inferno, que dizem que o castigo lá é eterno e, nós por cá, limitamo-nos a uns anos de prisão seguidos de reintegração na comunidade. Termina como uma nota à Nuno Lopes e pergunta porque é que Deus não vai trabalhar e fazer algo de útil para a sociedade, que o sacana não fez nada desde que se meteu a descansar no sétimo dia.

Saramago tem pleno direito de ser ateu e de argumentar como tal, mas não lhe ficava nada mal se o fizesse com menos rancor e mais racionalidade. Porque, bem vistas as coisas, há formas mais edificantes do que dizer que a Bíblia é um livro em muito desajustado da sociedade actual do que afirmar simplesmente que foi escrita durante um milénio, sem precisar, sem especificar, sem mostrar qualquer cnhecimento da coisa e pondo tudo no mesmo saco meramente com base num critério de idade. Já às Cruzadas, conjunto de guerras certamente deploráveis, facilmente se pode contrapor outros crimes hediondos e até bem mais recentes onde a motivação não foi religiosa, mas sim política ou etnica: as purgas soviéticas, as perseguições motivadas pelas crenças firmes da Revolução Cultural Chinesa ou o genocídio no Ruanda. Em nenhum destes casos houve uma classe sacerdotal a pregar guerra santa, mas todos eles mostram que qualquer ideologia, seja ela de que tipo for, pode gerar crimes hediondos. E se Hans Kung diz que as religiões afastam os homens, a História também tem exemplos do contrário; aliás, a História tem exemplos para tudo e é muito fácil chegar a determinadas conclusões quando se aponta o holofante para uns casos e se empurra outros para debaixo do tapete. As Cruzadas foram palco de inúmeros crimes? Sim! O cristianismo segregou populações inteiras - judeus e muçulmanos, nomeadamente - criando guetos dentro de cidades e sociedades inteiras? Sem dúvida! Mas também foi a Igreja a única a insituição que conseguiu ser um factor de unidade quando a autoridade imperial romana desvanecia e a Europa fragmentava-se em pequenos reinos.

E Saramago até pode achar que Deus é uma inutilidade - e é livre de pensar assim - mas convém que tenha um pouco de honestidade intelectual. Porque se está a falar de uma narrativa religiosa que é a Bíblia e pergunta o que fez Deus depois de descansar ao sétimo dia, das duas uma: ou o Nobel da Literatura é ignorante ou gosta de fingir que é. Senão pensemos no Dilúvio, no Exôdo, na conquista da Palestina e na própria vinda de Cristo. Independentemente de se ser ou não cristão, dentro da narrativa religiosa judaico-cristã o que não faltam são histórias de intervenção divina.

Se Saramago quer fazer humor, que o faça; se tem certas crenças ou opiniões e deseja manifestá-las publicamente, está no seu direito; se quer argumentar sobre alguma coisa, está à vontade. Mas é bom que o faça sem leviandades, desonestidade intelectual ou preconceitos que o põem ao mesmo nível de muita gente da alta hierarquia da Igreja Católica. Os extremos tocam-se, de facto...

2 comentários:

Miz Lucas disse...

Le "The God Delusion", escrito por Richard Dawkins. E um dos melhores livros que li ate hoje.

Héliocoptero disse...

Já me falaram imenso dele, mas ainda não comprei. É mais um a ir parar à minha lista de espera na Amazon :p