quarta-feira, 11 de março de 2009

No palácio do demérito

Casos como estes não são raros na Assembleia da República, mas o registo normal de um parlamento que é uma caixa de ressonância dos aparelhos partidários. São fruto de um processo que escolhe deputados não por mérito ou valor individual - seja ele académico, profissional ou cultural - antes segundo a lógica da fidelidade ao partido, da trocas de favores e da nulidade intelectual de quem vende a sua consciência e capacidade racional ao colectivo partidário, onde a cumplicidade silenciosa ou o maniqueísmo político são virtudes. E engana-se quem pense que nas legislativas está a escolher os seus representantes: o que cada português faz não é mais do que votar em listas previamente depuradas de qualquer elemento incómodo para o partido. Os Portugueses não fazem uma selecção livre dos seus eleitos, mas limitam-se a escolher de entre o que já foi escolhido por eles.

Não será de espantar a ignorância profunda ou o comportamento submissivo de quase todos "dignos" representantes da Nação face aos aparelhos dos seus partidos. Um deputado pode discordar de uma proposta, pode até emitir opiniões contra, mas, salvo raras excepções, acabará por votar a favor, conforme dita a direcção do grupo parlamentar, a qual confunde-se frequentemente com a direcção do partido. Ou, igualmente grave, a generalidade dos deputados abstem-se de se informar sobre aquilo em que está a votar, limitando-se a seguir as indicações que lhe são dadas por dirigentes partidários. Votam, por outras palavras, segundo vontade alheia. E nem é a os populares que os deputados supostamente representam: é a vontade do aparelho partidário, anónimo, obscuro e focado no interesse próprio ou no de restritos terceiros. Porque um deputado que seja uma pedra no sapato do partido acabará, provavelmente, num lugar não-elegível nas eleições legislativas seguintes, se entrar sequer nas listas. Exemplos da incompetência e preversões que daí resultam?

Veja-se esta entrevista onde vários deputados foram questionados sobre o valor do ordenado mínimo e em que nenhum deles soube dar a resposta certa. É de acrescentar que a coisa tinha sido recentemente alterada no parlamento, o que quer dizer que os deputados votaram o aumento de um valor que desconheciam. E até houve quem dissesse que isso não era importante (Nélson Baltazar, PS).

Recorde-se também o passado dia 10 de Outubro, aquando da votação da legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo, e de como vários deputados foram forçados a votar contra algo com que concordavam. Ou como um deputado socialista só votou a favor porque o deixaram. Não porque os seus eleitores o tivessem indicado, mas porque os deputados assim decidiram entre eles. Quer dizer, quem foi eleito para ser representante age não em conformidade com a sua consciência ou o desejo dos seus eleitores, mas de acordo com a vontade colectiva do grupo parlamentar. O qual tem uma direcção de relação umbilical com a do partido que, por sua vez, obedece ao líder partidário. E, como se isso não bastasse, há ainda quem argumente que os mandatos pertencem às forças políticas, já que é por elas que os deputados são eleitos, o que diz muito da natureza "representativa" da democracia portuguesa.

É de espantar que acabemos com representantes que produzem leis de má qualidade, incapazes de reconhecer regras básicas da língua portuguesa e sem força de vontade para se oporem às propostas vindas das direcções partidárias, de modo a que elas sejam vistas e revistas, corrigidas, aperfeiçoadas antes de, hipoteticamente, serem aprovadas?

6 comentários:

Anónimo disse...

Pois é Hélio mas não sei como isto poderia ser alterado a não ser que passasse a haver primárias na internet, com controlo sobre a votação electrónica. Só que também não sei que fraudes poderia gerar. No entanto a Revolução Digital deve ser imparável, não vejo maneira de estancá-la.

z

Héliocoptero disse...

Eu tenho uma ideia de como alterar a coisa: reformar o sistema eleitoral e o próprio regime de forma a destruir os aparelhos partidários tal como os temos.

E isso, na minha óptica, passa por um regime presidencialista, onde o mandato do executivo não dependa do legislativo para que este possa ser efectivamente livre. E passa também pela abertura do parlamento a candidaturas independentes, pela criação de círculos eleitorais mais pequenos, pela restrição a gastos financeiros nas campanhas e pela sua substituição por mecanismos públicos ou de serviço público.

As democracias morrem quando caem dois pilares essenciais: a representatividade popular e a rotatividade. Ambos estão muito fragilizados no actual regime português.

Pedro Fontela disse...

Acho que isso não resolve bem os problemas... se bem me lembro da minha história sem os partidos a vida parlamentar entrou no caos e eventualmente surgiram grupos informais dominados pelos "notáveis" que forçaram o seu esquema de favores a uma escala nacional. Não seria essa medida apenas uma forma de atrasar o relógio? Que levaria uma repetição?

Héliocoptero disse...

Isso foi o passado sem partidos de um regime parlamentar. Eu defendo um que seja presidencialista, com uma separação efectiva entre poderes legislativo e executivo - os tais pesos e contra-presos da democracia.

Além disso, não defendi o fim dos partidos: apenas o dos aparelhos partidários tal como os temos. Um partido político deve ser uma associação ideológica ou programática, nunca uma estrutura fechada que detenha o monopólio ou privilégio do poder, que é o que temos hoje.

Pedro Fontela disse...

Pode haver partido sem máquina partidária? Há algum caso?

Héliocoptero disse...

Máquina há sempre a partir do momento em que há uma instituição. A questão é qual a natureza da máquina: se é fechada e viciada por estar acomodada e ser veículo privilegiado de poder; se é aberta por não ser indispensável para o exercício da cidadania e de cargos públicos. Na política como noutras coisas, os monopólios acarretam vícios que só desaparecem quando a concorrência existe. E, neste caso, a abertura da política à iniciativa individual de cidadãos, sem qualquer necessidade de vínculo partidário, obriga o aparelho a abrir-se e a mexer-se.