segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Um futuro a duas rodas

No Dia Europeu sem Carros, eis uma boa notícia: Portugueses estão a andar mais de bicicleta. E não como forma de desporto, mas como meio de transporte urbano. Timida e cautelosamente, a coisa começa a ganhar raízes pela mão de autarquias que têm a lucidez de ver na bicicleta uma alternativa ao carro e até ao próprio autocarro.

Lisboa segue hoje o exemplo de décadas de outras cidades europeias, assinando um protocolo com a APL que permitirá a instalação de uma ciclovia de Belém ao Cais do Sodré (ver notícia aqui). Pena é que o projecto se limite à frente ribeirinha e não haja coragem para avançar com idêntica medida em toda a urbe lisboeta. Sem preconceitos, sem receios e alheio ao comodismo endémico que faz do carro um sinal de estatuto social. E esqueça-se os argumentos das colinas lisboetas e do clima, mero fruto da preguiça e falta de lucidez nacionais. Senão vejamos.

Se o terreno acidentado fosse realmente um problema e não uma desculpa já gasta, então seria natutal que Lisboa tivesse já ciclovias nas zonas planas. E, no entanto, não se vislumbra nem um metro que seja. Pergunte-se quantas estão previstas no famigerado Plano de Reabilitação da Baixa-Chiado para se perceber a importância que as pseudo-elites não dão aos transportes alternativos. Ou não é a Rua Augusta e respectivas paralelas, o Rossio, os Restauradores, a Praça da Figueira, o Martim Moniz e toda a frente ribeirinha terreno plano? E as avenidas 5 de Outubro, da República e de Berna? A Rua da Palma e a Avenida Almirante Reis? O relevo é propício a bicicletas, o espaço até nem falta, mas o modelo de mobilidade urbana é o mesmo: obsoleto, retrógado e irresponsável!

Se, por outro lado, o problema é o clima, o medo da chuva e do frio, a resposta volta a ser que isso é apenas e só o comodismo português a falar. Basta uma viagem ao norte da Europa para o confirmar. Na Suécia faz bastante mais frio do que cá e não há Inverno em que não neve ou caia chuva em abundância. E, ainda assim, os suecos não têm qualquer problema em dar uso à bicicleta como meio de transporte urbano debaixo dessas condições metereológicas. Digo-o até por experiência própria, que eu já lá morei durante um ano.

Como implementar, então, uma rede de ciclovias na Lisboa das muitas colinas? Primeiro, com imaginação e vontade.

Por exemplo, a Rua da Palma e a Avenida Almirante Reis têm uma inclinação mais leve que a Avenida da Liberdade e vão da Baixa ao Areeiro. Pelo caminho, permitem a ligação por terreno plano à Estefânia e à Praça de Londres por via da Rua Pascoal de Melo e a Avenida de Paris, respectivamente. E, uma vez num dos dois sítios, têm-se acesso por terreno pouco acidentado ao Técnico, ao Hospital Dona Estefânia, ao Campo Mártires da Pátria, a Picoas e ao Saldanha, às entradas das avenidas 5 de Outubro e da República, à Gulbenkian e à Praça de Espanha. Ao lado do El Corte Inglês, a subida a pé da muito inclinada, mas curta ligação entre as avenidas António Augusto Aguiar e Sidónio Pais dá acesso ao Parque Eduardo VII e Jardim da Amália por via da plana Alameda Cardeal Cerejeira, por sua vez uma rota para as Amoreiras sem ser preciso subir a Joaquim António de Aguiar. E se alguns acham a Avenida da Liberdade demasiado inclinada para subir, todos a acham óptima para descer, pelo que não existe motivo para não ter uma ciclovia para quem queira pedalar num ou em ambos os sentidos.

Depois, há que cruzar os transportes públicos com o uso da bicicleta. Se o terreno não facilita a vida, porque não adaptar os eléctricos e os elevadores para o transporte de bicicletas no exterior? Um cidadão que estivesse na Baixa e quisesse chegar a Picoas podia pedalar até ao Lavra, subir a encosta no elevador e continuar a pedalar já no Campo Mártires da Pátria. Ou subir dos Restauradores até ao Miradoiro de São Pedro de Alcântara pela Glória sem nunca ter que desistir do uso da bicicleta. Ou, em alternativa, fazer o mesmo com os autocarros que sobem a Avenida da Liberdade e a Fontes Pereira de Melo.

Dir-se-ia que este sistema não permite o acesso a qualquer rua. Mas também de carro se tem o mesmo problema, com vias interditas ao trânsito e outras apenas com um sentido, obrigando o condutor a dar voltas até chegar exactamente onde quer. E se não é por isso que se diz ser impossível circular de automóvel, porque é que há-de impedir a circulação de bicicletas? Dir-se-ia também que não há espaço para a passagem de mais eléctricos na cidade e que eles entopem o trânsito, mas isso sucede precisamente porque se privilegiou o automóvel individual como meio de transporte em Lisboa. Subjugou-se o modelo de mobilidade e a organização do espaço urbano ao uso do carro em vez de se apostar nos transportes colectivos e alternativos a bem de uma cidade mais harmoniosa, mais saudável, mais ecológica e com melhor qualidade de vida. Não houve vontade política para acabar com o comodismo generalizado ou coragem, sentido de responsabilidade, visão e um pouco de imaginação para ultrapassar as barreiras naturais e constuir uma Lisboa de século XXI. A mudança pode ter começado hoje, entre Belém e o Cais do Sodré.

Adenda 1: Para quem ainda acha que na urbe lisboeta só se anda de carro, Lisboa é das capitais com mais poluição.

Adenda 2: Sobre o uso da bicicleta em Lisboa, ver este e este blogue.

4 comentários:

RH disse...

Existem cada vez mais pessoas individuais a promover o uso da bicicleta na
cidade.

O Ricardo Sobral é uma destas pessoas. Tem um blog chamado Bicicleta na Cidade, o qual aconselho vivamente. Tem fotografias e muitas dicas úteis.
Visitem!

http://bicicletanacidade.blogspot.com/

Recentemente deu uma entrevista à Rádio Europa e uma outra à Antena 1, no programa do Pedro Rolo Duarte.

Uma outra pessoa é o Paulo Santos com o seu projecto 100 Dias de Bicicleta na Cidade de Lisboa. Actualmente o projecto já vai em 130 dias. O Paulo experimentou, adorou e já não se vê sem a sua bicicleta. Visitem o blog
dele!

http://100diasdebicicletaemlisboa.blogspot.com/

E vejam a reportagem desta semana na TVI
http://www.youtube.com/watch?v=74God8gFh80

Como sugestão final, sugiro que descubram o trabalho inovador da Cenas a Pedal, empresa muito dinâmica, que está a oferecer Cursos de Condução de Bicicleta. Estes cursos dirigem-se tanto a pessoas que nunca andaram de
bicicleta como a pessoas que já sabem andar mas que desejam melhorar as suas competências e estar mais confiantes na estrada, interagindo com os carros. A
Cenas a Pedal mostra-nos com estes cursos que é possível utilizar em
segurança a bicicleta nas nossas deslocações diárias, quer seja para a escola, trabalho ou nos restantes compromissos. Visitem o site deles.

http://www.cenasapedal.com/

Um abraço,

Hugo Jorge
http://mozambiquebikeculture.blogspot.com/m

Trieste disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Héliocoptero disse...

Não te preocupes, Trieste, o teu português é muito melhor que o "portunhol" de muitos portugueses. Inventas muito bem, portanto :p

O uso da bicicleta deve mesmo ser fomentado em todas as cidades e não apenas na capital. No norte da Europa, isso já é uma realidade (e as saudades que eu tenho da Suécia por isso); no sul, ainda estamos nos primeiros passos. Pensava que em Madrid a coisa já estava mais adiantada, mas, pelo que dizes, estou a ver que não. Temos que ser nós a dar o exemplo, Trieste ;)

Abraço grande!

P.S.: Não, não teria sido boa ideia fazer o Marquês de Pombal de bicicleta. Aquilo já de carro consegue ser selvagem...

Trieste disse...
Este comentário foi removido pelo autor.