domingo, 28 de setembro de 2008

A nulidade socialista

Há milhares que são, em opinião, contra a escravatura e a guerra e que, no entanto, nada fazem para lhes pôr fim; que, dizendo-se filhos de Washington e Franklin, sentam-se com as suas mãos nos bolsos e dizem que não sabem o que fazer e nada fazem; que chegam a adiar a questão da liberdade em favor da do comércio livre e, calmamente, depois de jantar, lêem sobre as cotações de mercado juntamente com os últimos boletins da guerra no México e, quem sabe, adormecem com ambas. (...) Eles hesitam e arrependem-se e fazem até petições, mas nada fazem de concreto e com efeitos visíveis. (Fonte)

Houve em tempos um senhor chamado Henry David Thoreau, filósofo, naturalista e activista de causas civis que, em 1848, proferiu um discurso sobre as relações do indivíduo com o Estado. As palavras, inflamadas pelo contexto da Guerra Mexico-Americana e da luta anti-esclavagista, passaram pouco depois a documento publicado que recebeu primeiro o título de Resistência ao Governo Civil e, postumamente, Desobediência Civil. Nele, Henry Thoreau questiona a autoridade de um Estado assente na escravatura, a moralidade de uma sociedade civil conformada e a própria legitimidade da democracia quando assente em maiorias desprovidas de virtude.

O texto, embora publicado há mais de 150 anos, não deixa de ser rico em passagens que poderiam ser hoje usadas para expôr a cobardia política de um PS que se prepara para chumbar com disciplina de voto os projectos-lei do Bloco de Esquerda e dos Verdes sobre os casamentos homossexuais. Substitua-se as causas de então - oposição à escravatura e à guerra - pela da igualdade de direitos e, sem ser preciso muito esforço, o que disse Thoreau em 1848 serve para descrever a timidez que o PS revela nesta entrevista de Alberto Martins ao Público.

Os socialistas podem ser, em opinião, a favor dos direitos dos cidadãos homossexuais; podem invocar a tradição de esquerda do seu partido e, no caso da JS, avançar com campanhas de rua em que dizem que somos iguais a eles; podem, até, criticar e diferenciar-se de quem afirma que o casamento tem como finalidade a procriação. Mas, chegada a hora da verdade, fazem tábua rasa das palavras com que tanto enchem a boca: os mais velhos anunciam disciplina de voto como se dentro do partido a questão não estivesse sequer em cima da mesa, enquanto os mais novos deixam cair o projecto pelo qual fizeram campanha. Sem coragem, sem convicções e sem um mínimo de massa crítica que se concretize em algo mais do que comunicados. Fala mais alto o eleitoralismo conservador, a estratégia amoral e o carreirismo político desprovido de valores, tão evidente numa JS que, pelo "crime" de desobediência às ordens vindas do Largo do Rato, não se quer ver privada de lugares elegíveis nas listas de deputados às legislativas de 2009. O que é isto senão o sacrifício dos ideais no altar da carreira política? O que é isto senão a busca ou preservação do poder como um fim em si mesmo e não como instrumento de trabalho pelo bem comum?

Os socialistas dizem que é tudo uma questão de oportunidade, a começar pelo próprio Primeiro-Ministro, que se recusa a debater o tema por não estar na sua agenda política, seguido de perto por uma caixa de ressonância que dá pelo nome de grupo parlamentar e que se prepara para descer ao nível do Partido Popular ao votar contra os casamentos homossexuais em uníssimo. Se o mal da coisa fosse o timing, o nomal seria que existisse liberdade de voto por a proposta do Bloco de Esquerda e dos Verdes não se opôr aos princípios do partido. Existindo, no entanto, a imposição de uma votação negativa, só se poderá concluir uma de duas coisas: ou a questão é de fundo ou a maioria dos deputados do PS é a favor dos casamentos homossexuais. Em qualquer dos casos, fica revelada a fraqueza de ideais entre os socialistas: se o problema com a igualdade de direitos é de fundo, então os valores de esquerda são nulos; se o mal é a existência de uma maioria, fica à vista a facilidade com que o PS sacrifica os seus ideais em nome de prioridades eleitoralistas.

Satisfeitos ficam os que se opõem aos casamentos homossexuais pelo anti-debate que a própria maioria parlamentar proporciona e felizes estarão os socialistas incapazes que, não tendo coragem ou sequer convicção para se comprometerem com uma causa que vá para além do seu auto-engradecimento, irão certamente dormir em paz sob a sombra de uma votação imposta, sem terem que se preocupar em fazer ou deixar de fazer.


Publicado em simultâneo no Devaneios LGBT

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