quinta-feira, 3 de abril de 2008

Tempos de demasiada certeza

No Público de hoje, num artigo intitulado «Tempos de incerteza» (página 41), Constança Cunha e Sá opina a respeito das palavras do presidente da Conferência Episcopal Portuguesa e das reacções que se seguiram. Embora eu concorde que o Estado democrático não pode, de facto, ser militantemente ateu, parece-me que a jornalista padece do mesmo mal que a alta hierarquia católica: mania da perseguição e certeza a mais.

Quando, por exemplo, acusa o laicismo de ser a raíz de uma separação radical que deixou ao Estado "o monopólio do espaço público, remetendo a Igreja para o domínio do privado, no qual a sua intervenção se limita a proclamações doutrinais que se dirigem apenas ao conjunto dos fiéis", é caso para perguntar em que país vive Constança Cunha e Sá, se em Portugal ou na China. Que eu saiba, nada num Estado laico que o seja de facto - e o português tem ainda tiques confessionais - impede a Igreja Católica de ter um lugar na praça pública e de intervir enquanto força social. Pelo contrário, uma entidade estatal efectivamente neutra em matéria religiosa pretende precisamente que as organizações religiosas ocupem o mesmo lugar que as associações culturais, ambientais, desportivas, sociais e cívicas de um modo geral: independentes do Estado e livres de intervir no espaço público. Para mais, Constança Cunha e Sá esquece-se (ou finge não saber) que quando a Igreja Católica fala não é apenas para os seus crentes, tal como demonstra a recente polémica a respeito do fim do divórcio litigioso: se a Santa Sé falasse apenas para o seu rebanho, estaria neste momento a tentar convencer os católicos a não se divorciarem, mas, em vez disso, insurge-se contra a possibilidade de todos os portugueses, seja qual for a sua religião se alguma, poderem terminar um casamento sem litigio. Do mesmo modo, se a Igreja Católica discursasse apenas para dentro, não teria tentado impedir que cada cidadão - católico ou não - pudesse decidir de sua consciência se quer ou não interromper uma gravidez, não tentaria vedar a possibilidade de qualquer cidadão poder casar-se com uma pessoa do mesmo sexo ou decidir que espaços religiosos ter ou serviços religiosos receber num hospital, se os quiser receber sequer. Se a Igreja Católica falasse apenas para dentro, estaria a convencer os membros do seu rebanho a não abortarem ou a boicotarem casamentos homossexuais; em vez disso, faz pressão para impôr pela via legislativa a sua doutrina a todos nós, católicos ou não.

Assim sendo, não se percebe porque é que Constança Cunha e Sá acha existir uma contradição entre os que defendem que a Igreja deve restringir-se às quatro paredes da vida privada (nos quais eu não me incluo) e, ao mesmo tempo, comentam todo o discurso feito pelo Vaticano. Do fundo da sua fé, a jornalista sofrerá possivelmente daquele mal muito católico (e não só) de achar que se tem alguma forma de propriedade exclusiva da verdade, o que não é novidade nenhuma. Basta conhecer as posições que o actual e o anterior Papa sob a orientação de Joseph Ratzinger tomaram a respeito do valor da fé católica: é a única verdadeira, o único caminho e a forma mais perfeita de mensagem divina. Com tamanha abundância de certeza, percebe-se que a Igreja e tantos católicos se julguem no direito de ditar à sociedade as regras que acham que ela deve seguir para o seu próprio bem, à imagem e semelhança de outras imposições que a Santa Sé em tempos fez cair sobre a vida de todos, católicos ou não. E percebe-se também o porquê de tantos acharem que ou a Igreja dita leis e comportamentos a todos os cidadãos, ou estão a empurrá-la que nem brutos para a privacidade entre quatro paredes: é que o catolicismo tem pouca prática no caminho intermédio entre esses dois extremos, nunca foi muito bom a recrutar ou a manter fiéis apenas e só pela força da palavra. Está antes habituado ao autoritarismo de uma ortodoxia e prefere a via da imposição assim que se apanha numa posição de força - real ou não - e por isso acha estranho esta coisa de desempenhar um papel na esfera pública sem se devotar a ditar regras aos não-católicos. E por muito que estranhe, não entranha nem por nada.


A Igreja Católica é livre de realizar cerimónias religiosas em espaço ou na via pública, é livre de pregar por escrito ou oralmente, é livre de construir templos com fachada para a rua, é livre de discutir as suas crenças e práticas em público, é livre de se associar, é livre de constituir os seus próprios serviços, os católicos são livres de usar símbolos religiosos e são igualmente livres de emitir opiniões. A Igreja até é e deve ser livre de estabelecer contratos com o Estado quando estão em jogo interesses comuns, como a preservação de património histórico ou projectos de assistência social. Convém é perceber que o país há muito deixou de ser oficialmente católico, que a comunidade religiosa não é a comunidade civil ou que a lei canónica não é a lei do Estado.

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