domingo, 26 de julho de 2009

O drama do colectivo

A respeito da entrada do Miguel nas listas de deputados do PS e da discussão que, sem surpresa, esse facto tem vindo a gerar (ver aqui, aqui, aqui e aqui, por exemplo), há uma pequena reflexão que anda a germinar na minha cabeça desde que soube da coisa.

Pessoalmente, não sei se teria feito o mesmo que o Miguel. Por muito que me agrade a ideia de os socialistas poderem vir a alterar o Código Civil na próxima legislatura, não esqueço que este é o PS das hesitações no combate à corrupção, dos Projectos (ditos) de Interesse Nacional, da recusa da cativação pública das mais-valias urbanísticas, do negócio dos contentores de Alcântara, do investimento desmesurado em rodovias em detrimento das ferrovias regionais e nacionais, da aposta cega nas grandes barragens e da paupérrima cultura democrática de quem acha que o papel dos cidadãos é calar e engolir a partir do momento em que há um programa de governo sufragado em eleições legislativas. Veja-se, por exemplo, os argumentos proferidos durante o auge dos protestos dos professores.

Isto é, no entanto, uma opinião minha e certamente que o Miguel terá a sua. A minha consciência impedir-me-ia de aceitar um lugar entre os deputados socialistas, a dele não. E digo isto sem qualquer vestígio de sarcasmo. Bom seria, aliás, que existissem deputados assumidamente homossexuais e defensores da causa em todos os grupos parlamentares.

Mas o drama nisto tudo - e é aqui que eu queria chegar - é o facto do nosso sistema político não permitir candidaturas livres e individuais à Assembleia da República (ou às municipais). É preciso formar um grupo ou ingressar num já existente, com a natural consequência de ficar tudo no mesmo saco e se acabar associado ao que esse mesmo grupo faz ou fez, independentemente do mérito individual de cada um dos seus membros. Por exigência do presente regime, o Miguel é forçado a associar-se ao melhor e ao pior de um partido para, nas suas próprias palavras, participar no Parlamento e contribuir um pouquinho que seja para a sua abertura à "sociedade civil". É certo que ele é independente, mas no boletim de voto não vai constar o nome dele; e vai ter que conduzir o delicado jogo de manter-se fiel à sua consciência individual num sistema que, na prática, obriga à sua dissolução no colectivo partidário. Nesse campo, não seria de espantar se o Miguel passasse por várias desilusões e muitas frustrações, obrigado a submeter a sua opinião individual aos ditames de um grupo.

Harvey Milk não precisou de ingressar em listas partidárias para entrar na vida política; nem sequer teve que passar pelo crivo de um aparelho político para se poder candidatar: bastou-lhe a sua vontade e o apoio de quem trabalhou com ele. Não teve, por outras palavras, que se confundir com um colectivo político e essa é a melhor forma de abrir o parlamento à sociedade civil: permitir que cada cidadão se apresente livre e individualmente perante os cidadãos e que seja eleito ou não segundo o seu mérito individual, não o de um grupo em que tenha que forçosamente ingressar e de cujo aval necessita.

4 comentários:

Anónimo disse...

pois, tens razão, eu também teria problemas em defrontar-me com um convite desses. De facto é inadmissível que em termos locais, pelo menos, os eleitores não possam escolher pessoas fora dos partidos. Enfim os partidos são máquinas de tachos/empregos e defendem-se apropriando-se do território eleitoral dos cidadãos. Como será que se poderia fazer? Talvez o Miguel venha a ser um pivot nisso mesmo.

z

Héliocoptero disse...

O Miguel talvez venha a contribuir para isso na medida em que ele possa confrontar o grupo parlamentar socialista quando lhe tentarem impor sentidos de voto.

Mas ter um parlamento efectivamente representativo, aberto e livre implica libertá-lo da bitola da "estabilidade governamental", ou seja, separar os poderes legislativo e executivo à maneira de um regime presidencialista.

Anónimo disse...

um deputado independente tem que ser independente da disciplina de voto senão é independente de quê?

portanto preferes a versão do presidente que governa, como nos EUA, no Brasil ou em França, ou realmente transpostos os nomes em Espanha ou Inglaterra.

Enfim esta solução semi-presidencialista portuguesa era original no conceito de equilibrio de poderes, se calhar foi por isso que deu pântanosa,

Héliocoptero disse...

Tem que ser independente de tudo com excepção da sua consciência e do compromisso que assume com os cidadãos do seu círculo eleitoral.

E sim, sou apologista de um regime presidencialista à semelhança do americano: separação de poderes de facto e um sistema de pesos e contra-pesos efectivo sem o pântano da "neutralidade" do chefe de Estado, que acaba a falar como um oráculo e a servir para tudo e para nada.