quarta-feira, 10 de junho de 2009

A teoria do exemplo

Os actos solenes, pela sua ritualidade, acarretam o risco de se tornarem vazios e mecânicos. O discurso de António Barreto, por ter sido proferido nas comemorações do 10 de Junho, corria o risco de ser mais um. Acabou por marcar pela diferença, não tanto pelo que disse (embora nisso também tivesse tido mérito), mas por quem o disse: o sociólogo é, afinal, uma das pessoas que melhor escreve no espaço público nacional e, desprovido de amarras político-partidárias, falou com a liberdade de um intelectual. O problema talvez esteja no resto e o resto é quem o ouviu ou leu: a generalidade do país.

António Barreto pede exemplo vindo de cima e tem toda a razão! Quem está em cargos dirigentes, tem responsabilidades representivas, é escolhido para a gestão da coisa pública, em suma, quem faz parte da cabeça do país deve, em primeiríssimo lugar, primar pelo exemplo. Caso contrário, só se ganha descrédito quando o laxista exige rigor, o mentiroso reclama pela verdade ou quem ganha muito pede sacrifícios a quem pouco tem. Assim se desacreditam as elites e, com elas, os regimes que sustentam; e, se não têm crédito, não têm a força moral para galvanizar esforços em momentos de crise como o actual.

Para o exemplo vir de cima, é necessário que quem está no topo tenha integridade, o que é coisa complicada porque, regra geral, a elite portuguesa só o é em aparência. Isto é, tem dinheiro, influência e poder, mas falta-lhe em demasiados casos o mérito individual, a integridade e o sentido de dever que caracteriza um grupo cimeiro digno. De entre a nossa elite política, empresarial, profissional e cultural, quem não fez parte ou a totalidade da sua ascensão graças a tráfico de influências, favores, subornos, cunhas, laxismo de prazos e critérios e outras facilidades mais? Entre os que, no local, ouviam o discurso de António de António Barreto, estavam deputados que todos os dias suspendem a sua consciência e deveres de representatividade a bem da fidelidade e carreirismo partidários, dirigentes políticos com formação académica feita não se sabe bem como e destacados militantes de forças partidárias que, se não o fizeram, certamente conhecem casos de empregos arranjados à custa de fidelidades ou amizades e contratos do Estado com empresas que retribuem a cunha política com um cargo ou uma contribuição financeira.

Dir-se-ia que foi precisamente isso o que António Barreto pediu que mudasse. É verdade! Mas a mudança só pode vir de um de dois lados: da própria "elite" ou de quem está abaixo dela. E é aí que a coisa caí por terra: é que se o exemplo tem dificuldade em vir de cima por a ascensão ser feita e mantida de forma imoral - logo, sem grande potêncial de exemplo - abaixo do escol social português também não está nenhuma mina de ouro moral. Muito pelo contrário: os defeitos da elite nacional são, em muitos casos, os da generalidade da sociedade portuguesa. A posição cimeira limita-se a maximizar a coisa. Senão faça-se o seguinte exercício.

Quando, há uns anos atrás, o parlamento ficou sem quorum porque a maioria dos deputados tinha ido mais cedo para férias, não faltou que criticasse os nossos ditos representantes. Mas quantos dos que lançaram farpas ao comportamnto dos parlamentares não fariam o mesmo se tivessem oportunidade? Quantos, no fundo, não criticaram os deputados por acharem errado sair do trabalho mais cedo, mas porque queriam fazer o mesmo e não podem?

De entre as nossas muitas características, a inveja é talvez a mais marcante. Sem exagero! Demasiadas vezes criticamos uma coisa não por a acharmos errada, mas por não podermos usufruir dela; se comermos todos do mesmo bolo, a conversa já é outra. Critica-se a troca de favores entre políticos e empresários, mas a generalidade dos portugueses até agradecia uma ou mais cunhas para conseguir um emprego, favorecer o negócio ou construir a sua casa. Critica-se deputados e gestores pelas suas regalias e vencimentos chorudos, mas muitos portugueses não os recusam se lhes fossem oferecidos nem dispensavam a possibilidade de faltar ao trabalho para ir de férias ou ao futebol. E eis como entramos naquele já nosso conhecido ciclo de hipocrisia em que se diz uma coisa num momento e faz-se o oposto no seguinte. Coisa generalizada em Portugal, tanto na elite como no resto da sociedade.

Exemplo e ethos? António Barreto não está errado no que pede, muito pelo contrário: meteu o dedo na ferida mais do que uma vez! O problema está em concretizar o pedido quando a mentalidade geral de uma sociedade é a do poder fazer só porque os outros o fazem. O bom exemplo está a escassear de cima e de baixo. E digo isto na pele de quem já recebeu uma proposta de trabalho a troco de militância partidária com a desculpa de que "eles também o fazem". Recusei, já agora.

1 comentário:

Anónimo disse...

Moral e ética!

Se perguntarmos a muito boa gente o que entende nestas duas palavras muitas dirão algo bonito e pomposo, mas muitas delas pensarão algo do género "Lá vem este com doutrinas do Salazar".

A sociedade portuguesa sofre do Sindrome Estado-Novo. Dou um exemplo: A pseudo-disciplina não obrigatória de Moral traz a religião anexada... Pergunto: Então mas só os religiosos (chamemos-lhes Católicos) são pessoas com moral? Será a moral algo que só se pode anexar à religião? não me parece. Enquanto isso vemos o Ministério a não reformar essa pseudo-disciplina (já era tempo) e os pais a instigarem os filhos a serem uns verdadeiros sacaninhas que para terem boa nota podem e devem (segundo eles pais) fazer a vida negra ao colega de carteira, se disso depender o seu sucesso.
Moral e ètica tem acima de tudo de começar na familia com simples gestos quotidianos simples que não vale a pena enumerá-los. Isto é um mero exemplo, tão banal como ir à pesca mas que julgo ilustrar bem a confusão que vai nas cabecinhas deste bons Lusitanos.

E caro amigo, claro que não aceitaste. Nem necessitavas de o enfatizar.
Abraços