No início do debate no Prós e Contras, o padre António Vaz Pinto fez questão de dizer que, mesmo reconhecendo a laicidade do Estado e da lei civil, há que atentar no facto do casamento ser anterior à comunidade política. O que é verdade, porque antes de o Estado o tomar para si, ele era do domínio da Igreja. Pena é que o dito padre não tenho ido mais além e concluido que o casamento antecede a instituição católica. Antecede até o próprio cristianismo, que antes do seu advento já os romanos se casavam. Tivesse ele feito esse exercício - ele e os que do lado dele estiveram - e o argumento do "adquirido civilizacional", da heterossexualidade como pilar e dualidade homem/mulher de que falava Vaz Pato teria caído por terra ou, pelo menos, ficado debilitado.
Entre os fins a que se destinava o casamento antigo - o tal que antecede o cristianismo - estava o de estabelecer a parentalidade, isto é, quem era filho legítimo de quem. Porque fazendo-se isso, determinava-se direitos e deveres familiares, como o de receber a herança ou quem é que tinha o dever de assistir quem. Estabelecia-se também relações sociais, na medida em que um liberto não se casaria, em princípio, com a filha de um senador. E, por fim, consagrava-se relações políticas, no aspecto de firmar acordos e alianças com casamentos entre membros das famílias envolvidas. Pompeu casou-se com a filha de César, não com a de um qualquer outro político.
Por outras palavras, ao estabelecer a parentalidade, o casamento antigo codificava a procriação e, nesse sentido, é óbvio que ele só poderia ser realizado entre pessoas de sexo diferente. De nada valeria casar quem não podia responder à função a que o casamento se proponha. E tanto assim era que, entre outros motivos, o divórcio podia ocorrer por ausência de consumação ou de produção de descendência. Ainda hoje a Igreja Católica preserva esse critério.
O problema é que de lá para cá muita coisa mudou. Leia-se o Código Civil e veja-se como o casamento civil - e é desse apenas que se está a falar - não prevê qualquer obrigação reprodutiva, mas apenas os deveres recíprocos de respeito, fidelidade, coabitação, cooperação e assistência (artigo 1672º). Em lado nenhum se veda a possibilidade de casar a pessoas que sejam estéreis ou que tenham já passado a idade fértil. Os artigos 1622º a 1624º até prevêem a possibilidade de realização de casamento quando um dos nubentes se encontra em risco de vida, sendo posteriormente homologado mesmo que a pessoa em causa morra pouco depois da cerimónia. E, que eu saiba, a necrofilia não produz descendência. Por último, em parte alguma do Código Civil está prevista a possibilidade de o casamento poder ser dissolvido com base na ausência de consumação ou de procriação.
Assim sendo, é correcto dizer-se que a lei não prevê qualquer forma de imperativo reprodutivo no que à união legalmente reconhecida de duas pessoas diz respeito. Desapareceu, por outras palavras, o elemento procriativo que, no passado, fazia do casamento um exclusivo necessariamente heterossexual. E isso, por si só, já devia ser suficiente para pôr em causa o tal "pilar" da heterossexualidade de que falou Nuno Salter Cid no debate no Prós e Contras. Mas há ainda outro aspecto a ter em conta.
Pela primeira vez na História da civilização ocidental, dois homossexuais podem ser reconhecidos como um casal monogâmico socialmente aceite. E friso as três palavras-chave. No passado, as relações entre pessoas do mesmo sexo eram, quando muito, toleradas como paixão, caso amoroso, complemento sexual ou até um elemento altamente restrito de alguns cultos religiosos. Que hoje possam ser uma relação monogâmica socialmente aceite é inédito. E os próprios opositores aos casamento entre homossexais admitem-no ao proporem um regime alternativo ou apontado para as uniões de facto, porque mesmo recusando o direito a casar, eles estão a reconhecer que é socialmente legítimo que duas pessoas do mesmo sexo possam ter uma vida conjugal monogâmica. Ora isso, conjugado com o desaparecimento de um imperativo procriativo do casamento, torna inevitável que, a seu tempo, dois homossexuais possam casar com todas as letras.
Recusar esse direito com base num tal "adquirido civilizacional", um "pilar" ou uma dualidade homem/mulher é apenas e só querer manter o aspecto exterior de uma função reprodutiva que não só não é um exclusivo, como nem sequer é já um requisito para o acesso ao casamento civil.
terça-feira, 17 de fevereiro de 2009
O debate (iii) - o "adquirido civilizacional"
Publicado por Héliocoptero às 01:47
Etiquetas: Casamento civil, Direitos LGBT
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2 comentários:
Felizmente que ontem nem sequer jantei porque ao ouvir tamanhos atentados à capacidade de raciocínio reconhecida ao ser humano era bem capaz de lançar para o exterior tudo o que me pudesse estar nas entranhas!
É divertido ver meia dúzia de tótós a lançar alarvidades para os ouvidos dos outros quando eles próprios reconhecem a sua falta de argumentos... Idiotas!
Mais bonito é defenderem a ideia de que o matrimónio heterossexual é o garante da subrevivência da espécie. Até parece que todas as crianças nascem no ambiente familiar imaculado que tanto apregoam. Este matrimónio tem tantos outros objectivos comuns que não a procriação...Loucos!
Mas haverá feridas na sociedade tão inflamadas como aquelas que a Igreja foi abrindo ao longo dos Séculos?
Senhores do Clero, não me acredito que DEUS determine e incremente a discriminação!
Caro Héliocoptero,
Veja o resultado do passatempo "Retrato da Semana"...
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