sábado, 21 de fevereiro de 2009

Enfim, santo!

Quase 580 anos depois da sua morte, Nuno Álvares Pereira vai ser oficialmente santo da religião que professou. Será por certo um dos processos de canonização mais longos da História, já que data do reinado de D. Duarte o primeiro pedido ao Vaticano de reconhecimento da santidade do Condestável. E eu sorrio, admito que alegre, por ver terminada tão longa jornada. Não porque seja católico ou sequer cristão, que não sou. Aliás, é-me indiferente que a coisa se deva a um olho "milagrosamente" curado ou que seja dúbio um santo de espada na mão. Os católicos que se preocupem com isso. Eu sorrio por antevisão de uma atenção renovada a tão ímpar figura da nossa História e que eu, no meu modo de ser pagão, há muito pus num altar.

É certo que Nuno Álvares Pereira não primou pelas virtudes da cidadania, humanismo ou tolerância. Foi um homem da guerra e de convicções religiosas fortes, com tudo o que isso implicava nos séculos XIV e XV. Mas o mérito dos seres humanos mede-se antes de mais pelo contexto do seu próprio tempo e só depois pelo que teve de atemporal. Se assim não fosse, bem que podiamos desprezar a democracia ateniense por ter tolerado a escravatura e discriminado as mulheres, John Locke por ter escrito que católicos e ateus não deviam ser tolerados e os Pais Fundadores dos Estados Unidos da América por não terem dado o direito de voto ao sexo feminino. Isto já para não falar em direitos dos homossexuais. Mas estes três exemplos históricos valem, respectivamente, pela noção de cidadania democrática, pela ideia da tolerância pela separação entre Estado e Igreja e pelo princípio da igualdade. Precisamente porque somos capazes de compreender o contexto do seu tempo e tomar o que tiveram de atemporal e de relevante para os nossos dias.

Assim sendo, que não se negue que Nuno Álvares Pereira foi um soldado que matou e decepou ou que foi um católico fervoroso que participou entusiasticamente na conquista de Ceuta, vista à época como cruzada meritória. Mas, reconhecido como fruto do seu tempo, reconheça-se também o seu valor enquanto líder, que foi capaz de transformar poucos em muitos. Pelo engenho, pela astúcia, pela audácia, pela devoção, pela força anímica ímpar que libertava e pela esperança que tinha, certo que embuída de fé. Dos pequenos fez grandes pelo esforço, crença e mérito. Pouco importa que tenha sido no campo de batalha, porque as virtudes estão lá na mesma e não é difícil transpô-las para qualquer outro contexto actual que consista num desafio à partida tido como perdido. Senão pensemos no quanto a audácia ou a esperança nos fazem falta no presente tempo do Portugal presente. E, é preciso não esquecê-lo, à escala do seu tempo e das suas convicções, Nuno Álvares Pereira soube manter integridade. Mesmo que queiremos (legitimamente) questionar os relatos de misericórdia, de contenção ou de escrúpulos no campo de batalha - que demonstram uma consciência activa - sobra ainda o seu exemplo de despojamento: quando era dos homens mais ricos e poderosos do país, renunciou a toda a sua fortuna para ingressar numa ordem religiosa e passar a mendigar nas ruas de Lisboa. Podemos até não atribuir valor à pobreza voluntária, mas vemos mérito na capacidade de sacrifício pacífico por algo em que se acredita.

De Nuno Álvares Pereira fica, então, a imagem das suas virtudes de líder e da sua capacidade de entrega. E, nesse sentido, será uma personagem histórica de relevância para um Portugal em crise, tal como disse Cavaco Silva (às vezes dá-me para concordar com ele). Que a memória do Condestável seja desprezada por ser uma figura medieval, em género de quem pergunta «de que é isso me serve no século XX?» ou «que problemas é que a sua canonização resolve?», é talvez um bom sintoma dos nossos males presentes. Séneca escreveu em tempos que, e passo a citar, "temos necessidade (...) de alguém por cujo carácter procuremos afinar o nosso: riscos tortos só se corrigem com a régua!" (Cartas a Lucílio, 11:10). Se nós, Portugueses, somos incapazes de encontrar modelos modernos e desprezamos os antigos, seja por incapacidade nossa ou por cinismo, então não será de espantar que tenhamos chegado ao estado actual de falta de convicção, de integridade e de elevação. Escasseiam homens como os da Revolução de 1383.

2 comentários:

Roderico disse...

Deixo aqui os meus parabéns pelo seu excelente blog. Trata o paganismo de uma forma tão aberta (sou também um crente na antiga Religião Romana) e simples, que oferece um gosto especial a quem o lê (ainda que pagão ou não pagão:).
Em relação a este post, sou também um medievalista, e apesar de não ser católico, fico também de certa forma feliz pelo reconhecimento do Condestável, precisamente por ser um símbolo daquela força que os Portugueses de hoje deveriam manter viva.
Bem haja!

Anónimo disse...

e além de rigorosos e informado ainda és um espírito aberto,

eu também sou pagão, os pagãos por causa da multiplicidade dos deuses são bem mais abertos e tolerantes do que os monoteístas,

embora já Seneca considerasse os diferentes deuses como facetas de um todo, tudo junto não é contraditório.

sobre as comemorações da santificação do Nun'Alvares reservo-me porque é agenda política, espero bem que o espírito dele venha ajudar a uma 'festa' que cá sei.

z