quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Os frutos de Policarpo

Das palavras do Cardeal Patriarca de Lisboa sobre os casamentos entre muçulmanos e católicas já pouco há a dizer. Sim, é verdade que são uniões que comportam riscos, tanto pela mentalidade religiosamente sancionada de alguns homens, como pela distinção fraca ou mesmo inexistente que se faz entre lei civil e lei religiosa em países de maioria islâmica. Também não me espanta que, como disse o Professor Moisés Espírito Santo em entrevista à RTP, o diálogo interreligioso seja difícil com a comunidade muçulmana, porque, para ser mais do que pancadinhas nas costas e gestos de boa-vontade, é preciso que se discuta doutrina e isso é terreno acidentado quando à mesa estão fés dogmáticas.

O criticável no discurso de D. José Policarpo está naquilo a que popularmente se podia chamar de «diz o roto ao nu». Como já foi apontado pelo Max, o que o estimado cardeal crítica nas crenças dos outros - o acreditarem que "a verdade deles é única e é toda" - é um mal que também abunda na alta hierarquia católica, tão claramente codificado no princípio Extra Ecclesiam Nulla Salus, que nega a "salvação" a todos os que, conhecendo os ensinamentos da Igreja, rejeitam-na. Depois há a questão da violência doméstica no maioritariamente católico Portugal a que o Pedro alude e que, julgo, o Cardeal Patriarca não irá justificar como sendo cometida por muçulmanos emigrados. Até porque essa é outra falha, o da demografia religiosa onde há nativos portugueses que se converteram ao islamismo e que não são naturais de um recanto do Médio Oriente. O "país deles", para muitos muçulmanos portugueses, é Portugal e só mesmo com muito nacional-umbiguismo católico é que se cai na esparradela de presumir que os lusos seguem naturalmente o catolicismo. Por fim, há que ter ainda em conta a diferença entre contexto religioso e contexto cultural, coisa que também costuma ser difícil para os lados da Igreja. Como refere o Marco, mais do que a religião que se segue, é por vezes a cultura que se vive que determina comportamentos e dita a forma da relação conjugal.

Assim sendo, o erro de D. José Policarpo foi o de ter generalizado sem antes ter feito sequer um pouco de autocrítica ou, para pôr isto noutros termos, não se ter olhado ao espelho antes de se meter a apontar o dedo indiscriminadamente. Nada de novo e que também não deixa de abundar por aqui ou aqui. Mas gostava ainda de acrescentar uma coisa que me parece pertinente.

Quando o Cardeal Patriarca deu o seu conselho matrimonial na Figueira da Foz, a Fátima Campos Ferreira questionou logo se aquilo não era uma forma de intolerância religiosa. Por muito que as palavras de D. José Policarpo tenham sido incorrectas - e foram! - suspeito que por detrás da pergunta da moderadora da tertúlia estava aquela paupérrima ideia de que tolerância religiosa implica a inêxistência de críticas e uma espécie de pézinhos de lã para não ofender ninguém. Ora, não há liberdade de expressão sem liberdade de criticar tudo o que está no espaço público - religiões incluídas - algo analisado com cuidado nesta e nesta entradas do De Rerum Natura, cuja leitura aconselha-se para se reflectir um pouco sobre o assunto. Para mais, e voltando ao início desta entrada, também não há diálogo interreligioso a sério e sem tabus se tivermos que andar em bicos dos pés para não beliscarmos dogmas alheios. Enquanto não tivermos a desinibição para dizer as coisas sem estarmos a olhar sobre o ombro, o que vamos ter vai precisamente no sentido oposto da convivência religiosa esclarecida e sincera: teremos as falinhas mansas da auto-censura (lembram-se das caricaturas de Maomé?), a declaração de discordância como sinónimo de intolerância e a ignorância como produto da mentalidade que não compreende nem quer compreender as crenças alheias por serem privadas.

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