quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Na rua com... (i)

... Desobediência Civil de Henry David Thoreau. E quando digo que é de se ler na rua, é porque o texto apela ao activismo convicto alicerçado numa moralidade sólida. E porque as palavras de Thoreau inspiraram Gandhi e Luther King, dois líderes civis que fizeram as suas lutas tomando a rua com uma resistência que vencia não pela força das armas, mas por uma convicção inabalável.

Originalmente uma palestra de 1848 sobre a relação do indivíduo com o Governo Civil, proferida em Concordia, no Estado americano do Massachusetts, o texto viria a ser publicado no ano seguinte com o título Resistência ao Governo Civil e, postumamente, depois de 1862, com o nome com que é hoje conhecido. Foi redigido no contexto da luta contra a escravatura nos Estados Unidos da América e a guerra contra o México, que terminaria precisamente em 1848, mas as palavras de Thoreau continuaram a ecoar até ao século seguinte, em novos contextos de novas lutas pela dignidade humana. E, dir-se-ia, conservam uma essência ainda actual.

Página após página, transparece o vigor da convicção de um homem que reprovava a ausência de consciência dos soldados de uma guerra injusta e que via com náusea a moralidade de pacotilha de um país que se dizia a terra dos livres, mas onde um sexto da população era composto por escravos. Crítico de governantes que adiavam sucessivamente a abolição da escravatura e de uma sociedade que pactuava com o status quo, Henry Thoreau expressa a recusa da inércia generalizada, das boas intenções inconsequentes, da moral que enche a boca sem fazer mexer mais do que os lábios e questiona o valor do voto livre quando exercido como um gesto oco de transferência de responsabilidades, vazio de convicção e de dimensão ética. Por alguma coisa ele era um descrente no poder das maiorias. Censura a noção utilitarista do proveito como critério de avaliação de uma acção e contrapõe com o imperativo moral, o dever de fazer uma coisa por ela ser justa, custe o que custar, mesmo que sozinho e mesmo que custe a vida. Sugere até o direito de recusar a autoridade civil quando ela está alicerçada na injustiça, porque às leis iníquas pode-se obedecer, pode-se tentar mudá-las e obedecer até o conseguir ou pode-se simplesmente transgredi-las por fidelidade aos ditames da consciência. E é aqui que é feito o esboço da desobediência civil de onde Gandhi e King mais tarde beberiam: Thoreau não quis subsidiar um Estado beligerante e esclavagista e recusou-se a pagar impostos; foi preso por isso, mas descreve a experiência com agrado e apela outros a seguirem o seu exemplo. Pouco importa que sejam uma minoria desde que convicta e pronta a fazer valer a sua resistência pela força do exemplo moralmente integro e plenamente convicto. Nas palavras de Henry Thoreau, "não é tão importante que outros sejam tão bons quanto tu, mas que haja alguma bondade absoluta algures, pois isso irá fermentar toda a massa" e, acrecenta mais à frente no texto, "não importa quão pequeno um princípio possa parecer: o que está bem feito, está feito para sempre."

Um século mais tarde, Martin Luther King diria ter lido na Desobediência Civil a expressão clara da ideia de que a não-cooperação com o mal é um imperativo moral tão grande quanto a cooperação com o bem, que nenhum homem moralmente convicto pode alguma vez ajustar-se pacientemente à injustiça. À iniquidade da autoridade civil deve-se resistir e nunca acomodar!

Desconheço se existe uma tradução portuguesa do texto, mas há edições em língua inglesa (ver aqui), tal como há em francês, alemão e castelhano. Vale bem a pena uma leitura profunda e repetida sucessivas vezes, principalmente nestes tempos de crise económica, tensões sociais e desgaste de um regime cujos agentes carecem precisamente daquilo que Henry Thoreau mais tem para oferecer: integridade e elevação moral! É de tomar as ruas, meus caros, é de tomar as ruas...


Publicado numa versão ligeiramente expandida no Devaneios LGBT

1 comentário:

Pedro Fontela disse...

Óptimos principios! Aliás quando li este texto (e vou ler o livro!) não pude deixar de me lembrar daquela conversa que tivemos sobre a "ordem de cavalaria" e cada vez me parece que "we're on to something"!