segunda-feira, 31 de março de 2008

De que fala o arcebispo?

Que "o Estado democrático não pode ser militantemente ateu" é uma verdade que decorre da própria neutralidade que obriga a entidade estatal laica a não tomar partido em matérias religiosas, não se declarando, portanto, crente ou ateu, caso em que estaria a tomar partido pela não-religião. E quem diz declarar, também diz comportar. Até aqui dou razão a D. Jorge Ortiga, mas onde é que o Estado Português anda a agir como se fosse "militantemente ateu" é coisa que não se descortina.

Terá sido na despenalização do aborto até às dez semanas? A medida mais não fez do que deixar à consciência de cada um a liberdade de interromper ou não uma gravidez em fase inicial, deixando aos católicos que assim o entenderem a liberdade de não o fazerem. Os católicos ou qualquer outro cuja fidelidade religiosa lhe vede a prática do aborto.

Terá sido o fim do lugar fixo da Igreja no protocolo estatal? Sendo o Estado laico, não se percebe porque é que uma instituição religiosa havia de ter lugar reservado, mesmo sendo certo que a sociedade, ao contrário da entidade estatal, tem crenças. E friso o plural: crenças! Se no protocolo se desejar representar esse elemento diverso do mesmo modo que podem ser representados os intervenientes culturais, desportivos, ambientais, económicos ou laborais da sociedade civil, há formas de o fazer que não passam por privilégios de uma organização ou instituição em particular.

Terá sido a polémica dos crucifixos nas escolas públicas? Não sendo o Estado religioso, não vejo porque é que havia se assumir como seu o símbolo de uma religião. Porque um crucifixo num lugar de destaque onde seria de esperar uma bandeira ou fotografia do chefe de Estado é o equivalente uma profissão de fé, coisa que está vedada a uma entidade laica. E sim, entre os símbolos nacionais encontram-se símbolos outrora religiosos ou vestígios dos mesmos, mas enquanto esses são reconhecidos pelo Estado como seus, o mesmo não sucede com este.

Terá sido a abertura da capelanias dos hospitais à sociedade civil? Não sendo o Estado uma entidade religiosa, não se percebe porque é que deve subsidiar os sacerdotes de uma confissão em particular ou sequer permitir que esta ocupe em regime de exclusividade os espaços nos hospitais que devem servir a diversidade de crenças dos internados. Que cada um peça a assistência religiosa que desejar - ou os familiares em seu nome - ou nenhuma, em vez de se assumir simplesmente que somos todos católicos.

Será que o presidente da Conferência Episcopal Portuguesa estava a referir-se à recente proposta de alteração da lei do divórcio? O fim do critério litigioso facilita as separações de livre-vontade, não contempla nenhuma obrigação de divórcio para quem quer que seja. Se os casais católicos não querem cortar os seus laços de matrimónio, são livres se assim o fazerem, mas não podem é arrogar-se do direito de impôr o modelo de vida conjugal da Igreja a toda uma sociedade que está longe de ser unanimemente católica.

Dito isto, onde anda o Estado português a ser "militantemente ateu" e onde não tem ele sabido reconhecer, respeitar e procurado satisfazer "a opção dos cidadãos a quem proporciona as condições necessárias para viver a sua religião, respeitando as outras crenças"? Não houve proibição de cerimónias religiosas nas ruas, não foi vedado o uso de símbolos religiosos em público, não há limites ao direito de associação religiosa nem ninguém é obrigado a deixar ou a dizer quais as suas crenças, não está proibida a discussão de temas religiosos nos media, sejam eles públicos ou privados, não se proibiu a construção de templos com fachada para a via pública, não se limitou a entrada de cidadãos em ordens monásticas ou outra forma de vida religiosa e não se proibiu qualquer forma de dispensa ou folga por motivos de prática religiosa. Pelo contrário, o que se tem feito vai precisamente no sentido de aumentar a liberdade de culto individual pela quebra de monopólios do catolicismo à custa do Estado, permitindo que a consciência religiosa de cada um e não a força da legislação civil determine a decisão de fazer ou não um aborto, que símbolos usar na escola, que assistência religiosa ter nos hospitais ou que rumo dar ao casamento. E mais há a fazer, como o fim do privilégio católico sobre assistência religiosa nas Forças Armadas ou a substituição da generalidade dos feriados religiosos pelo direito a dispôr de um número fixo de folgas por ano a acordar com a entidade empregadora.

Das palavras citadas no príncipio deste texto só se pode concluir uma coisa: a mentalidade reinante na alta hierarquia católica continua a ser a do autoritarismo como força que preserva a fé, da intolerância como método e do julgar-se no direito de determinar a vida alheia porque se acha ter alguma forma de propriedade exclusiva sobre a verdade e a vida em sociedade. De resto, a filosofia do actual Papa tem ido nesse sentido.

1 comentário:

Caturo disse...

Pau que nasce torto tarde ou nunca se endireita. Embora possa haver cristãos tolerantes (sobretudo os que só se dizem cristãos porque foram baptizados... que é talvez a esmagadora maioria da população europeia), o Cristianismo alberga em si o germe da intolerância, do dogmatismo, do imperialismo espiritual tido como dever religioso e ético.