domingo, 16 de março de 2008

As querelas neopagãs

O Pedro Fontela escreveu no seu blogue esta entrada sobre as querelas internas do neopaganismo, nomeadamente o marginalizar e ridicularizar dos wiccans por reconstrucionistas. É assunto em que eu já não tocava há muito, pese embora testemunhe com frequência atitudes como as referidas pelo Pedro (ou relatos delas), sintomas de um mal estar que ainda vai durar muitos anos porque as raízes são profundas e têm muito que as alimente.

No cerne da questão está o Wicca e a fraca qualidade académica das teorias de muitos dos seus seguidores e da abundante e muito comercial bibliografia por eles publicada. Apesar de ser verdade que já muitos wiccans puseram de parte a ideia da sua religião ser milenar e concordam tratar-se de uma tradição com pouco mais de meio século, persiste, no entanto, a mentalidade que presidiu aos erros de análise histórica dos primeiros tempos. E, persistindo, origina nova pesquisa de qualidade duvidosa ou ideia feitas que os seus autores insistem em apresentar como sendo factos históricos. É fácil perceber como é que isto acontece, basta desfolhar uma das muitas publicações wiccans ou New Age dos últimos anos: muito provavelmente, terá páginas e páginas sobre religiões pré-cristãs e nem uma citação ou referência a fontes primárias para sustentar a argumentação. Se existir, as conclusões conseguem ser do mais fantástico possível. A base da pesquisa é feita com outras obras modernas, poucas académicas de boa qualidade e raramente uma fonte medieval ou antiga, num tipo de bibliografia que reproduz a mentalidade pseudo-académica dos primeiros wiccans e que cria determinadas ideias sobre o paganismo antigo. A título de exemplo, soube recentemente do caso de um seminário onde foi defendida a ideia de que as Virgens Vestais eram prostitutas sagradas, pelo menos numa fase inicial. A base para a teoria? Astrologia, astronomia e umas quantas noções New Age. Mesmo que já seja do conhecimento geral que o Wicca não tem mais de cinquenta anos e picos, o tipo de má pesquisa que originou essa ideia continua a dar frutos e, obviamente, a azedar as relações entre wiccans e reconstrucionistas.

Julgo que o Pedro saberá que o reconstrucionismo nasceu precisamente como reacção à forte carga wiccan das primeiras tentativas de recuperação religiosa dos panteões pré-cristãos. Uma das raízes da fratura esteve precisamente no método: uns constroem a sua religião com base nas preferências pessoais, podendo recorrer a uma variedade de tradições e misturando-as a gosto, outros procuram estruturar a sua prática religiosa com base numa pesquisa académica o mais rigorosa possível (e possível aqui quer dizer muita coisa). A fratura ainda hoje se mantém e é visível no tipo de bibliografia utilizada, logo na mentalidade ou no tipo de argumentação comum em cada um dos lados. O choque é fácil ou mesmo inevitável, mais ainda se tivermos em conta que há extremismos. Se é verdade que entre wiccans não é difícil ouvir-se ideias pessoais serem apresentadas como factos históricos, também é verdade que a procura de rigor histórico entre reconstrucionistas leva alguns deles a cristalizar o paganismo moderno ou a defender uma forma de pureza cultural irreal. Por exemplo, considere-se os seguintes pontos desta definição de reconstrucionismo romano:

What We Are Not About

As we are concerned with historical accuracy, the public rites of the Religio Romana do not include:
(...)
- Eclecticism (as opposed to historical syncreticism; combining classical Roman religion with other cultural traditions that weren't combined historically; Romano-Celtic worship is certainly appropriate, sacrifice to Mercurius-Quetzalcoatl probably isn't).


Se os autores da definição reconhecem que no passado houve sincretismo entre divindades romanas e as de povos conquistados ou com as quais Roma teve contacto, não se percebe porque é que esse processo sincrético que era natural na Antiguidade tem que ficar restrito às divindades conhecidas então. O reconstrucionismo não pode ser sinónimo de recriacionismo e a confusão entre as duas coisas também contribui para as crispações entre wiccans e reconstrucionistas, porque passa a existir uma espécia de "excesso de modernidade" de um lado e um "excesso de antiguidade" do outro. E como as publicações wiccans e esotéricas proliferam e tendem a referenciar-se umas às outras, há material suficiente para alimentar novas querelas e conflitos entre reconstrucionistas e wiccans por muitos, muitos anos.

Quanto à falta de ligação física entre pagãos portugueses, a coisa depende do tipo de pagãos em causa. Se forem wiccans, estão certamente bem organizados, em boa medida porque o seu número é maior. Existe há já vários anos uma ramificação portuguesa da Federação Pagã, mas que, não obstante o esforço em diversificar as tradições que agrega, tende a congregar mais wiccans do que reconstrucionistas. A dita organização nasceu, aliás, à luz da mentalidade dos primeiros grupos pagãos que nasceram do Wicca e que se concentraram em panteões específicos: o que é verdade para as tradições wiccans é verdade para todas as religiões neopagãs, daí que se fale dos oito festivais como se se aplicassem até entre reconstrucionistas. Estes, por outro lado, são um fenómeno mais recente em Portugal, de expressão mais reduzida, com menos bibliografia disponível ao público em geral (olhe-se para as parteleiras de religião na FNAC) e com um problema sério: a premeabilidade a ideologias de extrema-direita. Que sirva de exemplo este fórum: reconstrucionista, rico em informação, mas igualmente fértil em ideias que fariam sorrir alguns militantes do PNR. Separar as águas neste campo será um dos desafios futuros do reconstrucionismo pagão em Portugal.

Dito isto, não se entenda que não há encontros e cafés: a Federação Pagã em Portugal tem organizado diversas actividades e neste blogue que o Pedro também conhece tem-se tentado um pequeno, mas primeiro encontro entre alguns reconstrucionistas celtas portugueses. Já se sabe que as novidades demoram a chegar a Portugal e mais ainda a ganhar consistência e estruturas próprias em terras lusas. A seu tempo, Pedro ;)

4 comentários:

Pedro Fontela disse...

È possível que este mal estar dure ainda alguns anos mas no fundo as lutas históricas em nada afectam a vivência religiosa quer de um grupo quer doutro… Sem querer contestar nada do que dizes (aliás não há mesmo nada a contestar, já que é verdade que a cristalização histórica que raia o dogma e a falta de separação entre o que são escolhas pessoais e o que são realidades históricas são características bem visíveis dos dois grupos) só queria realçar que tudo isso é uma questão de ego… no fundo nada impediria os dois grupos de se entenderem perfeitamente , reconhecendo as diferenças claro.

Quanto aos esforços desenvolvidos para reunir as comunidades… sinceramente não me parecem visíveis o suficiente, aliás qualquer pessoa que esteja mesmo decidida a praticar a sua religião de forma comunal em Portugal vai ter um problema do caraças para o conseguir fazer quer seja wiccan quer seja um reconstrucionista – faltam espaços online apropriados para se organizar as coisas, pelo menos é o que sinto como outsider pagão...

Héliocoptero disse...

Que não deve afectar a vivência religiosa dos dois grupos, sim; já os contactos entre os dois lados... enfim. Vamos ter por muitos anos wiccans que se recusam a ouvir lições de História com referências sólidas (eu próprio já ouvi o argumento de que ninguém é dono da interpretação do factos...) e reconstrucionistas que, em reacção, vão procurar cristalizar reconstruções pagãs. No fundo, os dois lados têm muito a aprender em conjunto - uns em métodos académicos, outros em capacidade de vivência moderna - mas fazê-lo é difícil se tivermos em conta que um deles nasceu como oposição ao outro.

Quanto à visibilidade do movimento pagão português, o problema está não tanto nos próprios pagãos, mas na cobertura mediática que recebem. A Federação Pagã tem organizado encontros, palestras e rituais públicos há já vários anos: qual foi a última vez que viste qualquer uma destas coisas noticiadas na tlevisão, rádios ou jornais? Tirando as reportagens meio sensacionalistas da TVI sobre bruxaria, não me lembro de nada que tenha referenciado o assunto.

Pedro Fontela disse...

Já agora Heliocoptero... Qual são as fontes portuguesas do reconstrucionismo romano?? Já que percebes alguma coisa do assunto dá aqui umas dicas :)

Héliocoptero disse...

Fontes portuguesas? Queres dizer bibliografia? Em Portugal não há muita coisa editada sobre a antiga religião romana em geral. Estudos sobre santuários, divindades e localidades romanas em actual território português há vários, sim, mas o cenário é pobre quando se trata do enquadramento religioso maior. Para o meio académico português, um clássico são os três volumes d' «As Religiões da Lusitânia» de José Leite de Vasconcelos.

A conversa é naturalmente outra em língua inglesa. Entre os melhores encontram-se estes dois, sendo o primeiro uma tradução do francês:

http://www.amazon.co.uk/exec/obidos/ASIN/0253216605/ref=nosim/novaroma00A/

http://www.amazon.co.uk/Gods-Ancient-Rome-TURCAN-R/dp/0415929741/ref=sr_1_2?ie=UTF8&s=books&qid=1205785355&sr=1-2

Quanto a fontes primárias, Cícero, Cato e Ovídeo estão entre os principais autores. Que eu saiba, não há textos antigos especificamente "lusos", só um vasto acervo arqueológico. A página da Nova Roma tem uma lista de leitura que dá vontade de ter uma conta bancária choruda :p

http://www.novaroma.org/nr/Reading_list_for_the_cultus_deorum

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