sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

Argumentos de primários

Independentemente do vocabulário exacto usado no texto proposto hoje na Assembleia da República, cem passados sobre o Regicídio devia ser tempo mais do que suficiente para se perceber a diferença entre ser republicano e ser anti-monárquico. Aparentemente, ainda não se chegou a esse estado de maturidade (faça-se honrosa excepção a este caso).

Alberto Martins, por exemplo, é da opinião que a aprovação do documento seria "um voto contra a República" e que não cabe aos deputados "julgar as pessoas na história, fazer qualquer juízo moral sobre a história ou reescrever a história." Motivos curiosos, tendo em conta que se o parlamento português vota a entrada de defuntas, mas distintas pessoas no Panteão Nacional, então é porque os deputados fazem uma avaliação do valor de figuras históricas. Na época em que viveram e nos nossos dias, julgando a atemporalidade dos seus feitos ou do seu trabalho. Além disso, há que perceber a distância que vai entre uma personalidade - polémica ou não - e as acções de que é alvo, as quais podem ou não ser repudiáveis. Se o deputado Alberto Martins percebesse isso, talvez lhe tivesse ocorrido apresentar outro texto em substituição do proposto pelo PSD. O presidente da bancada socialista, no entanto, limitou-se a votar contra e está o assunto arrumado. Não há discernimento que o acuda, não há distinção entre o homem D. Carlos I que, no exercício das suas funções de Estado, esteve longe de ser perfeito, e o acto repudiável que foi o seu assassinato. Ou Carlos de Bragança, o artista e cientísta, e o crime que lhe tirou a vida. E era isso que se pedia que fosse condenado. Argumentar que repudiar o uso do homicídio como arma política é ir contra a República é, lamentavelmente, sintoma de republicanismo primário para o qual não basta ser-se republicano para não se ser monárquico: há que dançar sobre campa alheia para vincar bem a ideia.

O PCP não fica atrás e, pela palavra do deputado António Filipe, junta-se à banda da amoralidade histórica com o argumento de que "os factos históricos não podem ser objecto de julgamento político, que um século depois não faz qualquer sentido." Talvez sim, talvez não. Talvez o deputado tenha razão. Mas, se tem, fica nesse caso a questão de porque é que em 2010 a República vai comemorar os cem anos da sua própria instauração. Afinal, se o 5 de Outubro de 1910 vai ter direito a celebrações de centenário é porque deve haver qualquer coisa que valha a pena festejar, se vale a pena festejar então há um juízo de valor, uma avaliação que o poder político conclui encontrando algo merecedor de comemoração. E, se assim é, não se percebe muito bem porque é que o deputado comunista acha que "os factos históricos não podem ser objecto de julgamento político". A menos, é claro, que seja uma amoralidade selectiva e que António Filipe sofra do mesmo republicanismo primário que Alberto Martins. Um século depois não faz sentido emitir um julgamento sobre um assassinato político, mas cem anos depois já faz sentido evocar favoravel e festivamente a controversa Primeira República Portuguesa em cerimónias oficiais...

E Fernando Rosas, que viu no voto de pesar proposto uma tentativa de "fazer com que os órgãos do Estado tenham uma visão oficial sobre a história", não explicou, nesse caso, como é que o parlamento decide que figuras ou acontecimentos históricos homenagear: se é por sorteiro simples, se é por avaliação dos eventos ou pessoas em causa. Porque se avalia e, após análise, chega a uma conclusão que exprime em documento aprovado pelos deputados, então é porque a Assembleia da República tem uma visão sobre a História. Poder-se-ia pensar que o problema de Fernando Rosas estava no vocabulário utilizado no texto proposto; se assim foi, o deputado não o revelou e não apresentou qualquer alternativa. Limitou-se, tal como Alberto Martins, a votar contra e assunto arrumado. De republicanismo primário estamos bem servidos.

5 comentários:

Anónimo disse...

Tenho vindo regularmente aqui nos últimos tempos, após várias referÊncias elogiosas, e tenho de dar-te os parabéns pelo excelente blog! Com certeza continuarei a vir aqui!

Em relação ao assunto de que falas, quanto a mim até faz mais sentido comemorar o regicídio do que a instauração da república: a I República, como tu e bem aludes, foi bastante pior como regime do que a monarquia parlamentar (e bastante democrática para os cânones da época, como os nossos ilustres deputados parece ignorarem) que vinha substituir...
Aliás, um dos principais motivos para termos o regime tal qual o temos hoje, com as suas virtudes e defeitos mas do qual esses ilustres
deputados beneficiam, foi precisamente evitar os erros colossais da I República.

Anónimo disse...

Não era suposto o meu nick ter o link incorporado? Ou só funciona se o blog for do blogspot?

Héliocoptero disse...

Bem, eu não disse que a I República foi pior que a monarquia. Disse apenas que foi polémica, foi e é. As suas virtudes e defeitos são ainda hoje discutidas e o facto de o Estado promover uma celebração do seu centenário demonstra que, ao contrário do que disse o deputado comunista, os orgãos de soberania avaliam os factos históricos e têm, ao contrário do que dá a entender Fernando Rosas, uma visão oficial da História.

Cem anos depois e três décadas depois do 25 de Abril já se devia ter interiorizado a ideia de que o Estado é de todos e não apenas dos republicanos, que não é preciso ser-se anti-monárquico para se ser republicano e que as opiniões políticos pessoais não se deviam sobrepôr à condenação de um homicídio.

P.S.: Podes ligar o teu nick a uma página seleccionado a opção "Alcunha" em baixo nesta janela e adicionando um endereço na barra seguinte ;)

Pedro Fontela disse...

Héliocoptero,

Bem eu não me guio pela tese da neutralidade histórica, há coisas que foram inegavelmente boas e outras inegavelmente más (era o mesmo que recusar emitir um julgamento moral sobre o nacional socialismo…) mas neste caso chego a conclusões um pouco diferentes. Em primeiro lugar a República não deve elogiar um rei pelo simples facto de ter sido um governante de Portugal, se nada fez de espantoso pelo país qual o porquê da admiração? Depois não considero o regicídio como algo errado. O regime actual permite exprimir muitas vozes, incluindo as monárquicas enquanto a monarquia pela sua definição é intransigente na defesa dos seus privilégios além do que do ponto de vista moral todo o modelo aristocrático é profundamente errado!
Não lamento a morte do rei, e admiro que tenha havido pessoas com estômago para tomar a coisa em mãos – apesar de ser discutível se teve o efeito que eles desejavam a verdade é que tiveram a coragem de dar a vida pelo ideal da República.

Héliocoptero disse...

Amigo Pedro,

Do mesmo modo que a República não deve elogiar uma pessoa pelo simples facto de ter sido um governante, também não se deve inibir de reprovar um homicídio ou de reconhecer mérito a alguém só pelo simples facto de ter sido rei. As decisões e projectos de políticos de D. Carlos são tão polémicos ou mal entendidos quanto muitas das decisões e orientações da I República, mas isso não impede o Estado de reconhecer mérito à primeira parte do regime republicano. Numa democracia salutar, num país que estivesse confortável com o seu próprio passado, haveria mais sobriedade e menos fulgor ideológico na memória histórica. Como aparentemente não há, só se pode concluir que parte da classe política vive o príncipio do século XXI como se estivesse ainda no princípio do século XX: os mesmos demónios, a mesma retórica inflamada, o mesmo estremar de posições e não obstante a tentativa de dar ares de lucidez à coisa.

A monarquia, por definição, não é incompatível com democracia ou liberdade, como provam os reinos da Escandinávia e o facto de, no regime monárquico constitucional português, o Partido Republicano ter conseguido eleger vários deputados para a Assembleia Constituinte. É certo que a monarquia perseguiu os republicanos, mas o que faria a actual República se membros do PPM se associassem a atentados à bomba e tentativas de golpe de Estado? É provável que a monarquia nunca permitisse a passagem pacífica para um regime republicano, mas o que dizer do artigo da actual da Constituição que veda a possibilidade de restauração de um trono?

As coisas estão longe de ser uma questão de preto e branco, caro Pedro, e era bom que os ilustres deputados da nação tivessem um pouco menos de militância ideológica e um pouco mais de sobriedade política. Não a tendo, estão ao mesmo nível dos monárquicos que fazem da monarquia uma solução para todos os males e de D. Carlos um salvador da Pátria.