quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

Uma forma de vida chamada corrupção

Maria José Morgado quer o apoio da sociedade civil no combate à corrupção, disse ela nesta entrevista à SIC. É lógico que o peça, mas o mais provável é que tenha uma longa e, possivelmente, infrutífera luta pela frente, não porque a sociedade civil não fale em combater a corrupção, mas porque a generalidade dos portugueses vive dela. Conforme aponta a reportagem do mesmo canal, denúncias como as de António Marinho Pinto não são novas, nem novo é o desfecho sereno, de encolher de ombros e assobios para o lado com ares de quem não sabe e nem nunca soube de casos de corrupção. As acusações são silenciadas em cumplicidades de longo alcance ou tenta-se abafá-las com críticas populistas que descridibilizem o denunciante, como muito bem descobriu José Sá Fernandes. E isto acontece tão facilmente e tão insistentemente porque a corrupção não é a doença, mas apenas um sintoma de um mal mais profundo que é a inveja generalizada. Sem afloramentos filosóficos.

A mentalidade geral em Portugal não diz tu não podes fazer isso porque é errado. A mentalidade dominante em Portugal diz antes tu não podes fazer isso porque eu também não posso. Escasseia o imperativo moral, o sentido de responsabilidade e o sentimento de dever cívico, mas abunda o desejo de auto-satisfação, de achar que se pode fazer porque os outros também fazem e de parar apenas quando os outros também pararem. Independentemente da moralidade do acto. E este mentalidade tem duas grandes consequências. A primeira é a escassez de uma cultura de mérito, porque se os outros só podem ter se eu também tiver, então há que nivelar as coisas por baixo. A segunda é a aceitação social da corrupção desde que possamos todos tirar partido dela, cenário em que as denúncias só tendem a surgir quando aparece alguém de fora, alguém desligado da cumplicidade geral, ou quando se zangam as comadres, isto é, quando uma pessoa deixa de receber o mesmo que todos e decide dar com a língua nos dentes. Por algum motivo as irregularidades dentro do BCP só começaram a tornar-se públicas pela mão de Joe Berardo.

Relevante foi também o caso de há uns anos atrás, quando uma sessão do Parlamento foi interrompida por falta de quorum porque a maioria dos deputados tinha decidido ir mais cedo de férias. Houve imensas críticas aos desleixo dos legisladores e com razão. Resta saber o porquê dessas críticas, se o ser moralmente reprovável faltar ao trabalho, ou se o facto de a maioria dos portugueses também querer ir mais cedo de férias e não puder. Isto é, a generalidade de nós também gostaria de meter um fim de semana prolongado, ausentar-se do emprego para ir ver o jogo de futebol ou ir ao estádio com a desculpa de ser uma viagem de trabalho, como já vários deputados fizeram. Se não o fazemos, é porque não pudemos, porque não temos a mesma liberdade de horários e condições de trabalho que os nossos legisladores e, por isso mesmo, eles são criticados. Não por a generalidade dos portugueses achar errado falhar às suas responsabilidades por uns dias de praia ou uma ida à bola, mas porque se nós não o podemos fazer, então os deputados também não devem.

A generalidade dos portugueses também gostaria de tirar uma licenciatura com a mesma facilidade que José Sócrates, ter uma cumplicidade como a de Ferreira do Amaral com a Lusoponte, mudar de trabalho com o mesmo à vontade que Armando Vara ou ter um padrinho como Luís Filipe Menezes para nos arranjar um emprego num banco. Embora critique estes e outros casos, no fundo a maioria dos portugueses só acha as beneces alheias más por não poder usufruir delas: se pudesse, passavam a ser boas. O perdão pelo BCP de empréstimos a amigos e família de administradores é um escândalo, mas a maioria dos portugueses faria o mesmo se pudesse. Ou, pelo menos, não teria pudor em pedir igual favor se tivesse um parente ou companheiro que também pudesse mexer os cordelinhos. A generalidade das pessoas em Portugal pode não ser nenhum Ferreira do Amaral ou Armando Vara, mas porque o que reina não é o sentido de dever e de responsabilidade cívica, mas antes a auto-satisfação, o português anónimo safa-se pelos mesmos meios que a classe política que tanto critica: afinal, estamos no país onde se descobre uma ocupação, sobe-se na carreira, passa-se num exame, ganha-se um concurso, faz-se um negócio, consegue-se financiamento, licencia-se uma obra ou apressa-se a conclusão de outra graças a cunhas, favores, amizades e tráfico de influências. Na alta finança como na gestão do pequeno comércio, na esfera do poder como entre os portugueses anónimos, no governo nacional como nas autarquias. Corrupção generalizada, portanto, movida por um sentimento de inveja que anula imperativos morais. A única diferença entre o que faz um governante e o que faz um português anónimo é apenas e só a magnitude devido ao facto de um ter um cargo dirigente e o outro não. De resto, as más práticas da classe política são as da generalidade dos portugueses.

Por isso, Maria José Morgado bem que pode esperar pelo apoio da sociedade civil. Talvez o tenha ao início, mas é bem capaz de dar pela falta dele se alguma vez a Justiça chegar aos pequenos hábitos diários que fizeram da corrupção um verdadeiro modus vivendi português e que fazem com que, quando se trata de combate a práticas ilícitas e negócios menos claros, Portugal seja, para usar as palavras de António Vieira, terra que não se deixa salgar.

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