quinta-feira, 15 de maio de 2008

Intransponível, diz ele

António Neto da Silva, candidato à liderança do PSD, declarou acreditar que "duas pessoas que querem viver juntas, partilhar as suas vidas e os seus patrimónios, independentemente do género, devem ver protegida essa sua vontade através de uma figura jurídica", mas, enquanto dá uma no cravo, faz questão de acrescentar que "chamar-lhe casamento seria desvirtuar um conceito social que constitui uma referência intransponível da nossa Sociedade." (notícia aqui, via Cinco Dias)

Intransponível? Porque a vida conjugal só se concebe no seio do casamento ou porque o casamento é uma instituição imútavel? António Neto da Silva estaria de qualquer modo errado, mas não estou a ver de que outra forma um determinado modelo de união contratual entre duas pessoas pode ser intransponível.

Se o é por ser a única forma de vida conjugal, em modos de argumentar que só o casamento confere estabilidade ao casal e, logo, não pode ser transposto sob pena de enfraquecer o seu papel na sociedade, aconselho o ilustre candidato à presidência do PSD a inteirar-se da legislação portuguesa e a olhar um pouco à sua volta. Não, caro António Neto da Silva, à sua volta, mas fora do Santuário de Fátima. Na rua, sabe? Há anos que o casamento em Portugal deixou de ter o monopólio da vida conjugal, há anos que há portugueses que vivem em uniões de facto legalmente reconhecidas pelo Estado. Não se percebe porque é que o casamento há-de ser intransponível, quando uma parte sociedade quer e vive conjugalmente bem sem ele e sob a protecção de uma lei aprovada pelo parlamento nacional.

Se, por outro lado, o atributo se deve a uma qualquer natureza imutável da instituição, António Neto Silva devia novamente inteirar-se, mas desta feita da História de Portugal. Mais concretamente, da polémica em torno da instituição do casamento civil e do quanto ela tem de semelhante com a actual discussão. A 7 de Novembro de 1865, o Duque de Saldanha dava ares do seu conservadorismo na seguinte carta a António Augusto de Aguiar, Presidente do Conselho de Ministros que viria a aprovar o famigerado Código Civil:

O Concilio de Trento (na sessão 24, cap.1) define claramente que entre christãos não é possivel separar o contrato do sacramento, e que as pessoas que quizerem contrahir contrato e não o sacramento, não fazem nem uma nem outra cousa", advoga Saldanha, argumentando com o concílio que, no século XVI (1545-63), lançou a Contra-Reforma, para concluir: "Nutro a intima e consoladora convicção de que o ministerio a que v. exª. preside não apresentará o projecto do codigo sem elle ter sido expurgado de tudo o que diz respeito ao casamento civil, de tudo o que é contrário á religião que professâmos (...) evitando por esse modo o accender um facho que poderia produzir um terrivel incendio; e assim bem merecerão vv. ex.ªs da patria, e ainda mais se por uma vez fizessem cessar as usurpações do ministerio dos negocios ecclesiasticos; se dessem vigor ao principio que o regere Ecclesiam Dei não pertence ao poder temporal, mas aos bispos. (citação retirada daqui)

Ou seja, em meados do século XIX, havia quem, em Portugal, achasse que casamento há só um, o da Igreja Católica e mais nenhum, porque estava revestido de natureza religiosa que lhe conferia valor. Se fosse civil, isto é, desprovido do sacramento católico, não era casamento nem coisa nenhuma. Naqueles dias como hoje, havia quem atribuisse a um modelo de união contratual entre duas pessoas uma natureza imutável, absoluta ou, nas palavras do candidato à liderança do PSD, intransponível. Ontem como hoje, achava-se que o casamento ou segue uma determinada convenção ou não é casamento: em 1865 tinha que ser religioso, em 2008 tem que ser entre um homem e uma mulher. Para uma coisa pretensamente intransponível, o casamento parece estar certamente aberto a mutações. Pelo menos é o que se depreende do facto de já ninguém questionar que tanto pode ser civil como religioso, não obstante a polémica que gerou no século XIX português e a oposição de parte da sociedade nacional de então. E eis que surge uma questão:

Se António Neto da Silva considera o casamento uma referência intransponível porque imutável e, tendo ela mudado há coisa de cento e cinquenta anos, que irá ele fazer se for eleito presidente do seu partido e Primeiro-Ministro de Portugal? Irá aceitar a existência do casamento civil - logo, aceitar a sua mutabilidade - ou irá revogá-lo, eliminá-lo da lei portuguesa a bem da restauração dessa susposta intransponibilidade do casamento?

Para quando o cumprimento do artigo 13º da Constituição Portuguesa? António Neto da Silva recusar-se-ia a ver discriminação e uma violação da Lei Fundamental de Portugal se se instituisse um casamento com outro nome para uniões de cidadãos de raça diferente?


Publicado em simultâneo no Devaneios LGBT

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