sexta-feira, 7 de março de 2008

O contestável Dom Nuno

Via Gay Alentejo, cheguei a esta entrevista a Nuno da Câmara Pereira, cavaleiro paladino da causa monárquica portuguesa que, em países mais arejados, estaria a prestar um péssimo serviço à Coroa. Antes de se explicar as limitações dos argumentos do dito senhor, leia-se de uma assentada todo o esplendor da sua retórica católica contra o casamento homossexual:

O casamento é uma instituição delineada pela sociedade monogâmica através dos tempos, como forma de proteger e promover os valores da família. A garantia das ligações homossexuais, encontra já a necessária segurança nos dispositivos legais criados para o efeito, e se não, criem-se mais dispositivos. Porem o casamento só se justifica para dar continuidade à natural e sucessiva constituição de novos indivíduos, no seio do que se convencionou chamar família, pequena célula, base da sociedade, base da individualidade perante a sociedade agregadora. A diferença do género justificará sempre a diferença de atitude e esta, necessita de protecção pela necessária promoção desses valores sem os quais a despersonalização da sociedade os liquidaria em pouco tempo. A dualidade das ligações homossexuais, com o devido respeito, merecem a sua própria orgânica, merecem outros cuidados, merecem outro respeito sem necessidade de conflito, com a da família convencionada e condicionada pela própria natureza. O casamento só ainda existe, para garantir a continuidade das relações vinculadas pela geração de indivíduos, no seio de cada família.

Podia-se escrever uma resposta em prosa fluida e sem quebras esquemáticas, à medida do texto da entrevista, mas, como a homofobia do caro fadista tem meandros profundos, convém deixar tudo bem explicadinho para quem passe por este blogue e se dê ao trabalho de ler o que aqui se escreve. Vamos por partes, portanto.

1. Que a Igreja Católica tenha, ao longo dos tempos, estruturado o casamento como instituição monogâmica e forma de protecção e promoção dos "valores da família" até pode ser verdade. Por alguma coisa, aliás, a Santa Sé fez do matrimónio um sacramento. Mas confundir o catolicismo com a sucessão de sociedades desde as épocas anteriores a Cristo até aos nossos dias é coisa de quem, no espírito da monárquica Carta Constitucional de 1822, ainda não percebeu a diferença entre comunidade civil e comunidade religiosa ou que há mundo civilizado para lá das paredes da sacristia. O casamento, temo, foi em tempos idos um contracto com fins políticos e financeiros, uma forma de firmar transações, acordos e alianças, ao ponto de o padrão das uniões - se entre membros da mesma família, se entre famílias diferentes - variar consoante se estava a viver um tempo de crise ou de prosperidade. E, muito frequentemente, era um contrato pouco ou nada monogâmico, chegando-se, nalguns casos da História da Europa católica, a aceitar a concubinagem como instituição legítima de produção de descendência. Isto já para não falar, é claro, das sociedades que ainda hoje praticam o casamento poligâmico.

2. As relações homossexuais já encontram, é certo, alguma protecção no actual quadro legal português, nomeadamente através das uniões de facto, mas não só não é uma protecção plena e livre de limitações, como não existe a possibilidade de escolha entre a opção de uma união legalmente reconhecida ao final de dois anos e o contracto imediato que é o casamento. Poder-se-à certamente alargar os direitos das uniões de facto ao ponto de se tornarem, em termos práticos, indistintas do casamento civil, mas, nesse caso, porque não abri-lo simplesmente aos casais do mesmo sexo? Por causa da carga tradicional do nome? Os católicos prezam a forma acima do conteúdo?

3. O casamento não se justifica apenas para "dar continuidade à natural e sucessiva constituição de novos indivíduos". Quem pensa que sim é porque ainda não se deu ao trabalho de ler o actual Código Civil e descobrir que em artigo algum o Estado exige um contrato-promessa de procriação antes de aprovar um matrimónio civil ou procede à sua dissolução caso não haja produção de descendência. De igual modo, o Estado reconhece ainda a possibilidade de realização de casamentos urgentes caso, por exemplo, um dos conjuges esteja à beira da morte, não sendo motivo para a não homologação desse mesmo casamento o falecimento entretanto ocorrido do nubente. Ou seja, o Código Civil português e, pelo vistos, a sociedade portuguesa, reconhecem que o casamento pode ter lugar por motivos meramente sentimentais ou de transmissão de direitos e herança, sem possibilidade de procriação. A menos, é claro, que o senhor Nuno da Câmara Pereira defenda que a necrofilia resulta em produção de descendência. Além disso, as uniões de facto e as famílias monoparentais demonstram bem como a reprodução e a constituição de família já deixou de ser um exclusivo casamenteiro. Se para a Igreja Católica assim não o é, é lá com ela, mas ao ilustre fadista ficava bem perceber a diferença entre a sociedade civil e a Santa Sé.

4. Porque motivo, então, hão-de os casais homossexuais merecer a sua própria orgânica, outros cuidados e outro respeito? Pela impossibilidade física de procriação? Mais valia que se criasse também um quadro legal diferente - com outro nome e tudo - para os casais heterossexuais que se casam para lá da idade de reprodução, para os que se casam mas preferem adoptar e para os que se casam com urgência. Tudo porque a católica mentalidade de Nuno da Câmara Pereira é incapaz de acomodar a ideia de que o casamento é uma instituição mutável, que não é propriedade privada da Igreja e que, neste país, há apenas cem anos atrás, era algo exclusivamente religioso até à introdução do casamento civil. Também isso deu azo a acesa discussão e também naquela altura se terá ouvido o argumento de que a algo que "sempre" fora religioso e era um sacramento não se podia dar o nome de casamento a partir do momento em que fosse um contrato secular, profano, civil. Hoje parece não haver problema com a coisa e a sociedade vive bem com essa dessacralização, tal como a Suécia, os Países Baixos e Espanha vivem bem com o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Portugal também há-de lá chegar.

Publicado em simultâneo do Devaneios LGBT

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